sábado, abril 10, 2010


DONA
FLOR
E SEUS
DOIS
MARIDOS


EPISÓDIO Nº 90



- Quem morreu? Dona Ângela? Tu está doido?

- Nem faz três horas. Minha velha, Vadinho…

Muitas vezes em solteiro, e mesmo depois de casado, inclusivé em companhia de dona Flor, fora ele comer a feijoada dominical de dona Ângela, naquele fim de linha de Brotas. Gordíssima e cordial, ela o tratava como filho, numa fraqueza pelo moço jogador, perdoando-lhe a vida de deboches. Não era ele uma réplica, até nos cabelos loiros, do finado Aníbal Cardeal, batoteiro imagine, seu amásio e pai do Cigano?

- Igualzinho ao outro… Dois perdidos…

Novamente sentiu – se Vadinho sem ar e sem acção, dia mais nojento, dia mais sem jeito: primeiro Flor com aquela teimosia da desgraça, agora o Cigano a conduzir nas dobras do crepúsculo e a atirar no passeio o cadáver de dona Ângela…

- Mas, como se deu? Ela estava doente?

- Nunca vi ela doente, que me lembre. Hoje, quando saí, depois do almoço, deixei ela no tanque, lavando roupa. Cantando, contente que só vendo…Tu não vê que hoje foi o dia de pagar a último letra do carro, a gente tinha o dinheiro certinho. De manhã agente ficou, os dois, contando, ela e eu… Ela me entregou o que tinha juntado nesse mês, tudo em nota de dez tostões, dois mil réis. Tava alegre porque agora o carro era meu de verdade.

- Fez uma pausa, esforçando-se por não chorar: - Diz que de repente deu uma dor lá nela, no peito. Que foi só o tempo de dizer meu nome e caiu morta… O que me dói é que eu não estava lá, estava pagando a letra do carro… Isidro, aquele do botequim, é que me veio avisar, na praça… Fui correndo… Ah! meu irmãozinho, ela estava toda fria, os olhos esbugalhados…

Agora eu vim porque estou sem um vintém, o dinheiro foi todo no pagamento do carro… O meu e o dela, da minha velha…

Sua voz quase em surdina, escutariam as comadres? Mesmo as comadres morriam um pouco na agonia do sol esbatidas na sombra quando Vadinho entregou ao Cigano aquele sujo dinheiro de violência e seu límpido palpite de vitória.

- É tudo que tenho…

Tu vem comigo? Tem muito que fazer…

- Não houvera de ir?

Livres da presença de Vadinho, as comadres entravam-lhe casa adentro: no quarto dona Flor e as malas, dona Norma tentando demovê-la. As xeretas não compreendiam as razões de dona Norma. Razão só dona Flor a possuía, carradas de razão. Um coro de cochichos:

- Oh!, vida mais injusta, como se pode martirizar assim…

- Ela devia era largar ele de uma vez…

- Atrever-se a bater… Que horror!

Jamais dona Flor acreditou não terem elas escutado a conversa do Cigano, seu anúncio de morte. Não fosse seu Vivaldo, o da funerária, e dona Flor não teria sabido do falecimento de dona Ângela nem de como Vadinho empregara o dinheiro… Seu Vivaldo passou por acaso: aproveitando estar nas imediações, veio trazer a receita de certo prato de bacalhau, de origem catalã, delícia saborosa em pantagruélico almoço em casa de Taboadas, em cuja mesa nunca serviam menos de
oito ou dez
pratos, um esbanjamento.

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