DONA
FLOR
E SEUS
DOIS
MARIDOS
E SEUS
DOIS
MARIDOS
EPISÓDIO Nº 96
Ao vir do Rio, dois meses antes, não tirava da boca o nome de Sílvio Caldas, não tinha outro assunto. Prometera-lhe até um almoço cozinhado por dona Flor. Um absurdo… Sujeito assim famoso, manchete de jornais, capa de revistas, na Bahia por uma semana, não ia chegar nem para as encomendas, para os convites dos ricaços; mesmo se quisesse, onde conseguir tempo para comer em casa de pobre? “Uma série de homenagens estão sendo organizadas por figuras da alta sociedade para festejar a presença do grande artista entre nós”, anunciava o jornal. Com satisfação, no entanto, e grande, ela assumira a trabalheira desse almoço, disposta até a gastar as suas parcas economias, escondidas numa coluna do leito de ferro, a enterrar o dinheiro do mês, a fazer dívidas se necessário, para receber em casa tal convidado e a dar-lhe de comer a verdadeira comida baiana.
Não duvidava das cordiais relações estabelecidas no Rio; não era o cantor firme presença nas mesas de jogo? Mas daí a vir aquela celebridade a sua casa, a distância era grande. Para Vadinho, porém, as distâncias não existiam, nem obstáculos de qualquer ordem, para ele tudo era fácil, a vida não tinha impossíveis.
Numa ponta de melancolia dona Flor comentou o assunto com dona Norma:
- Loucura de Vadinho… Inventa cada uma… Almoço para Sílvio Caldas, você já pensou?
Dona Norma, porém, entusiasmava-se:
- Quem sabe se ele não vem? Menina, ia ser de fechar o comércio…
Dona Flor satisfazia-se com muito menos:
- Eu me contento em ir à serenata… Assim mesmo, se tiver companhia… Senão nem isso…
- Por companhia não se preocupe, porque eu vou de qualquer jeito. Se Zé Sampaio não quiser ir, então que tenha paciência, vai ficar sozinho em casa. Vou com Artur...
No programa das desenove horas, o jornal falado da rádio anunciou a estreia do cantor, marcada para aquela mesma noite para as famílias no salão elegante do Palace Hotel, ao lado das salas de jogo, cantando às duas da manhã no Tabaris para os boémios e as mulheres da vida.
Recolheu-se dona Flor, a pensar que, de todo aquele movimento em torno do cantor, só uma coisa era certa: naquela noite não adiantava esperar a chegada de Vadinho; com Sílvio Caldas na terra, era como se ela não tivesse marido.
Quando, pela madrugada, saíssem do cabaré, a última dobra da noite da Bahia os atendia nos mistérios do pelourinho, nos caminhos das Sete Portas, no mar e nos saveiros da Rampa do Mercado.
Dormiu e sonhou. Um sonho confuso onde se misturavam Mirandão, Sílvio Caldas e Vadinho, com seu irmão Heitor, sua cunhada e dona Rozilda. Todos em Nazareth das Farinhas, onde dona Flor ajudava a cunhada, grávida, amarrada por uma corrente ao guarda-chuva da sogra.
As notícias dos jornais e da rádio e a carta do irmão reuniam-se numa barafunda, sonho mais extravagante. Dona Rozilda, furiosa, queria saber o motivo da presença de Sílvio Caldas em Nazareth. Pois, respondeu ele, para ali se deslocara na exclusiva intenção de acompanhar Vadinho numa serenata a dona Flor. “Tenho asco a serenata” rugiu dona Rozilda. Mas ele empunhava o violão, a voz de pétalas e veludo a acordar o povo do Recôncavo na noite de Paraguaçu… Dona Flor sorri no sonho e no acalanto.
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