segunda-feira, abril 26, 2010


DONA
FLOR
E SEUS
DOIS
MARIDOS

EPISÓDIO Nº 103



O negro surgiu no fim da noite, já perto do crupiê anunciar a bola derradeira. Vinha espelunca de Três Duques, de rabo entre as pernas, a ronda engolira-lhe as últimas moedas. Passara no Abaixadinho e na ratoeira de Cardoso Pereba, findando ali, no Tabaris, último porto daquela aflita navegação.

O Tabaris era uma espécie de esquina do mundo, meio casino, meio cabaré, explorado pelos mesmos concessionários do Palace Hotel. Exibiam-se ali os bons artistas contratados para o Palace e uma segunda classe onde dava de um tudo, desde velhas ruínas no término da carreira, até meninotas apenas púberes, protegidas umas e outras de seu Tito, administrador com carta branca. Das primeiras tinha pena, nada mais melancólico e trágico do que uma velha actriz sem contrato. As outras ele as ensaiava e experimentava em seu sujo escritório; se não servissem para o tablado, trabalhariam somente como rameiras, sem acumular. No correr da noite o Tabaris ia recolhendo os frequentadores do Pálace, gente em geral de posição e dinheiro, e a ralé das diversas tascas do Abaixadinho, baiuca com pretensões a casino, até o antro o antro esconso de Paranaguá Ventura. Ali vinham todos terminar a noite, na última tentativa, na derradeira esperança.

Entrou Arigof e deparou com Vadinho em glória, cercado de uma roda de curiosos a apreciar sua soberba classe ao bacará, Mirandão a seu lado esquerdo, afanando-lhe de quando em quando uma ficha, várias damas ao lado direito e, entre elas, as Irmãs Catunda. “Depressa, passe uma ficha, meu irmãozinho, rápido que já vai fechar” pediu Arigof num sussurro patético. Preso às cartas, Vadinho, meteu a mão no bolso, retirou uma ficha, não viu sequer o valor. Era das pequenas, de cinco mil-réis, não exigia mais o negro. Correu para a roleta, depositou a dádiva no vinte e seis, onde a bolinha morreu; e duas vezes repetiu o número. Dez minutos depois o jogo terminava, Arigof remia noventa e seis contos, Vadinho doze, sem falar no conto e trezentos no bolso solidário de Mirandão.

Foi nessa noite magnificiente que o negro Arigof, com sua elegância britânica e seus modos de grão-duque, encomendou e pagou adiantado o tecido e o feitio do melhor linho branco inglês. Devia ele de longa data sessenta mil réis a Aristides Pitanga, alfaiate doido pelas mesas de roleta e temeroso de jogar. A sovinice não lhe permitia mais de uma ou duas paradas por noite, modestas, rondava as mesas vibrando com as apostas dos outros, sugerindo palpites. Peruando em comentários sobre sorte e azar.

Há muito rezara o alfaiate pela alma daquele resto de conta, mas, ante a performance espectacular do freguês exigente e caloteiro, perdeu a serenidade e ética, desenterrou o débito da coluna de perdas e lucros, fez a cobrança ali mesmo, na vista dos parceiros e das mulheres damas, uma desfeita. Não se alterou o negro:

- Sessenta mil-réis? Daquela roupa…? E, me diga, Pitanga, quanto está você cobrando hoje por um traje de linho branco?

- Linho comum?

- Inglês, S 120, casca de ovo… do melhor que houver na praça.

- Por aí… por volta de uns trezentos mil réis…

Meteu Arigof a mão ao bolso, extraindo pelegas de quinhentos:

- Pois aí estão dois contos… Faça seis ternos novos para mim. Subtraia seus sessenta mil réis e fique com o resto de gorjeta pelo trabalho de vir cobrar conta de freguês em mesa de jogo…

Site Meter