segunda-feira, maio 03, 2010

DONA
FLOR
E SEUS
DOIS
MARIDOS


EPISÓDIO Nº 109


Após o tango, ao voltarem à mesa, onde Vadinho, tendo encomendado ceia e bebidas, atendia a perguntas de dona Gisa, com informações sobre coisas e pessoas, persistiu a curiosidade em torno a dona Flor. Flutuava no ar, como se um halo de furtivos olhares e mastigados cochichos a cercasse, como se ela não coubesse na atmosfera da sala, feita à medida das senhoras da nata social, baronesas da graça, não-me-toques da Barra, e das cortesãs mais caras e de ofício menos evidente.

Dona Flor sente uma espécie de distante vertigem ali sentada no salão. Um pouco zonza, indo do contentamento ao medo, incerta sobre a significação desses olhares de relance, desses gestos esquivos; eram de simpatia ou de mofa esses sorrisos? Mal escuta os informes de Vadinho:

- Tem para mais de setenta anos… Só joga bacará e só aposta ficha de cinco contos. Já teve noite de perder mais de duzentos… umas vez os filhos vieram – dois ordinários e uma catraia acompanhada do marido – e quiseram levar ele a pulso, pintaram o diabo. O pior de todos era a filha, uma cobra a atiçar os irmãos e o chifrudo do marido… Agora estão fazendo um processo para provar que o velho está broco, de miolo mole, não presta mais para governar o dinheiro dele…

Dona Gisa estende o pescoço para melhor espiar o ancião de finos cabelos brancos, quase pele e osso, mas firme nas pernas, apoiado a uma bengala, o rosto tenso, uma última luz cúpida nos olhos, como se apenas a inspiração do jogo o sustentasse vivo.

- Afinal quem trabalhou e ganhou o dinheirão todo, não foi ele? – pergunta Vadinho, numa revolta contra a família do velho – O que foi que os filhos fizeram, além de gastar? São uns boas-vidas, nunca prestaram para nada.

E agora querem dar diploma de demente ao próprio pai, trancar o infeliz em casa ou num hospício… Eu metia essa canalha toda na cadeia, a começar pela vaca da filha, mandava dar uma surra de facão em cada um…

Dona Gisa discordou: esse negócio do dinheiro tinha implicâncias sérias. O velho, em sua opinião não era assim dono de delapidar no jogo a sua fortuna pois a família possuía direitos legais…

Interrompeu-se a lição de economia política de dona Gisa, porque o paulista fez questão de vir cumprimentar Vadinho e dona Flor.

- Vadinho, o meu amigo aqui quer lhe conhecer, ouviu falar muito de você e lhe viu dançar… É um graúdo de São Paulo… - Zéquito Mirabeau fazia as apresentações, voltava-se para o forasteiro: - Vadinho, você já sabe, é… - a presença de dona Flor continha-lhe a língua – é um amigão…

Vadinho, a voz quase solene, introduziu as senhoras:

- Minha esposa e uma amiga, dona Gisa. Americana, um poço de saber…

Dona Flor estendeu as pontas dos dedos, de repente igual a uma tabaroa qualquer. O paulista curvou-se, beijou-lhe a mão:

- José de Barros Martins, um seu criado. Parabéns, minha senhora, raramente vi um tango tão bem dançado… Admirável!

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