quarta-feira, maio 05, 2010


DONA
FLOR
E SEUS
DOIS
MARIDOS


EPISÓDIO Nº 111



Dona Flor ia contrita numa mudez de quem se insinua em templo secreto, defeso aos não iniciados. Finalmente conseguira atingir e penetrar o misterioso território onde Vadinho era milionário e mendigo, rei e escravo. Bem sabia ter chegado apenas a uma nesga desse chão nocturno, à orla desse mar de chumbo. Ali começava um tempo de sonho e de aflição; as salas do Pálace eram a rica e luminosa capital desse mundo, dessa seita, dessa casta. Para mais além, nos caminhos da noite da cidade, aquele território de farras e agonias, de fichas e mulheres, de álcool e entorpecentes (cocaína, morfina, heroína, ópio, maconha, dona Flor arrepiava-se só de recordar os nomes), prosseguia nos cabarés, nas casas de tavolagem, nos castelos, nas pensões de mulheres, nos antros ilegais, na zona imunda e pululante como um mosqueteiro, nos sombrios esconderijos dos fumadores de maconha. Por esses atalhos Vadinho se movia indómito, dona Flor, ante a mesa de roleta, tocava humilde a fímbria desse mundo.

Para mais além do Pálace, com sua categoria “estritamente familiar", como diziam os anúncios, com suas luzes e suas sombras - um abajur sobre cada mesa – os lustres de cristal, a orquestra de primeira, as senhoras da alta sociedade, as raparigas de luxo, as teúdas e manteúdas e as escoteiras, os coronéis do cacau, do gado, do açúcar, os ricaços da cidade, os moços boémios e os vigaristas, para mais além do Pálace, nas encruzilhadas da noite pobre e despida de ouropéis, estendia-se o mistério de Vadinho, sua última verdade.

Num trânsito rápido dona Flor auscultou essa louca geografia, oceano de suas lágrimas, vales e montanhas de sua dura espera, de seu sofrido amor. Dona Gisa ao contrário: vagarosa, fascinada pelos rostos dos jogadores, por seus gestos. Um deles falava sozinho, evidentemente furioso consigo mesmo. Fosse por seu gosto, a professora não iria mais embora. Mas o garçon, numa deferência a Vadinho, seu liga, vinha lhe avisar estar servida a ceia e próxima a hora das atracções.

Voltaram à sala de dança e deram com Mirandão, recém-chegado. Que milagre era aquele, sua comadre no Pálace, viera disposta a estourar a banca? Seu aniversário? Meu Deus do céu, como pudera esquecer? No dia seguinte mandaria a patroa com o afilhado e uma lembrança. “Basta com a comadre e o menino”, disse dona Flor, para desobrigá-lo do compromisso e porque já ganhara naquele aniversário o seu presente, não queria mais nenhum: ali estava com Vadinho, não queria mais nada.

A comida não era lá essas coisas, arroz sem sal, carne sem gosto, mas que delicado Vadinho a servi-la, a lhe dar na boca os melhores pedaços de seu frango! Dona Flor já não sentia medo nem acompanhamento.

As luzes se apagaram por completo para imediatamente de novo se acenderem, e então Júlio Moreno, o cabaratiê, anunciou as atracções. Primeiro as Irmãs Catunda, uma lástima de voz, sábia exibição de seios e ancas:

Vou dançar a noite inteira,
Rancheira…
Rancheira…

A petulante era mais bem feita e mimosa das três, dona Flor não podia desconhecer, negar aquela verdade quase nua. Mas Vadinho nem ligava para as mulatas, mais interessado em saborear a sobremesa. Agora era dona Flor quem olhava com desdém: tomou da mão de seu marido, ficaram os dois conversando e sorrindo, enquanto as gentis irmãs se
desdobravam por entre o jogo de luzes, seios em azul, ancas em vermelho.

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