segunda-feira, maio 10, 2010

DONA FLOR

E SEUS DOIS
MARIDOS


EPISÓDIO Nº 115



Ao cumprir seis meses de viúva, dona Flor aliviou o luto até então fechado em nojo, obrigando-a, na rua ou em casa, a negros vestidos sem decote. Única nuance nessa negritude: as meias cor de fumo.

Por isso, naquela manhã, as alunas (turma nova, numerosa e simpática), ao vê-la de blusa alva estampada com grinaldas escuras, um colar de pérolas falsas ao pescoço e leve traço de batom nos lábios romperam em entusiásticos aplausos à alegre professora. Ainda devia ela esperar outros seis meses para o verde e rosa, o amarelo e o azul, o vermelho e o havana; e para as novas e sensacionais cores da moda: azul-rei, azul-pervanche, hortênsia, verde-mar.

A alegre professora, sim. Como no verso de dona Maga Paternostro, a rica. Porque, em verdade, dona Flor aliviara o luto interior, despira os véus da morte, quando na véspera da missa do mês, enterrou dentro de si o carrego do falecido. Manteve, em respeito aos costumes e aos vizinhos, o rigor do preto, retomando, no entanto o seu riso manso, sua atenta cordialidade, seu interesse pelas circunstâncias diárias, seu capricho de dona de casa. Ainda com uma sombra de melancolia a fazê-la vez por outra pensativa e a dar à sua formosura doméstica uma nova qualidade, certo encanto nostálgico; curiosa, porém, da vida em derredor, imprimindo vigoroso alento à escola de culinária, de cujo renome descuidara naquele primeiro mês.

Cerrou a boca ao nome do finado, parecendo tê-lo esquecido por completo, como se, após a crise e a obsessão, viesse a concordar com dona Dinorá e suas comparsas, no facto de ter sido a morte do ordinário uma carta de alforria, encontrando-se, por fim, de acordo a viúva e as beatas. Em aparência, pelo menos.

Naquela ocasião da missa do mês, ao volver da vista à campa onde depusera as flores e o preceito do adivinho, o mokan de Ossain, abriu as janelas da sala de visitas permitindo finalmente à luz do sol iluminar a casa, varrendo sombras e espectros. Tomou da vassoura, do espanador, de trapos e escovas, e atirou-se ao trabalho.

Dona Rozilda propôs-se ajudá-la mas, em limpeza tão completa, também ela se foi de volta a Nazareth das Farinhas, quando filho e nora começavam a alimentar as clássicas esperanças de melhores dias. Afinal, quem mais necessitada de permanente companhia, do afecto e da assistência da mãe, senão dona Flor, recém-viúva e inconsolável? Dona Flor sozinha e indefesa, exposta aos múltiplos perigos de seu ingrato estado – era justo fosse dona Rozilda, mãe experiente e intrépida, residir com a filha desprotegida, ajudando-a no trato da casa e na solução dos inúmeros problemas. Quem sabe maravilhoso milagre sucedera, vendo-se enfim o casal e a cidade de Nazareth livres da mãe e sogra, tão mais sogra do que mãe? Celeste, nora e serva, fizera promessa de valia a Nossa Senhora da Aflição.

Suas preces não obtiveram eco; mais forte o santo de dona Flor, defendida, sem sequer o saber, nos axés e pejis dos candomblés, por força do rei de Ketu, Oxóssi, orixá de sua comadre Dionísia (Okê!). Assim, foi a viúva quem se livrou de dona Rozilda que, aliás, não se fora antes de pura má-criação, de rabujice, de pirraça aos vizinhos. Pois apeteceu aos vizinhos tiranizá-la, impor-lhe condições de convivência.

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