quarta-feira, maio 12, 2010




DONA

FLOR

E SEUS

DOIS

MARIDOS



EPISÓDIO Nº 117



“Pobre Heitor, pobre Celeste, pobres crianças…” lastimou o doutor e padrinho. Mas, entre dona Flor, viúva e freudiana, e o casal já na cangalha de dona Rozilda há anos, não lhe coube vacilação; sacrificou o afilhado e a gentil esposa, em cuja casa almoçava e sempre bem em suas constantes idas ao Recôncavo.

Cada qual com sua cruz, decidiu ele; a dela, dona Flor a carregara sete anos a fio; aquele marido, pesado lenho. Não era justo agora, na esteira da viuvez, empurrar-lhe dona Rozilda, um calvário completo: cruz, coroa de espinhos, vinagre e fel.

Sem dona Rozilda, só de raro em raro as xeretas das vizinhanças traziam à baila o nome do maldito, em respeito às exigências de dona Norma e de dona Gisa, e também porque dona Flor retomara o curso normal da vida, após atravessar as infindas areias da ausência. Não a vida de antes e, sim, um calmo viver, pois sem a presença do esposo, sem suas implicações: os sustos, os desgostos, os aperreios, o desespero. Tudo isso acabara, dona Flor habituou-se a dormir a noite toda, de um sono só. Deitava-se relativamente cedo, após a prosa habitual com dona Norma no círculo das amigas, as cadeiras na calçada, comentando acontecimentos, programas radiofónicos e filmes. Ia ao cinema com dona Norma e seu Sampaio, com dona Amélia e seu Ruas, com dona Emina e doutor Ives, apreciador entusiasta de películas do faroeste. Aos Domingos almoçava no Rio Vermelho, em casa dos tios; tio Porto com a eterna mania das paisagens; tia Lita começando a envelhecer; mantendo, porém, seu jardim e seus gatos em esplendor.

Não quisera dona Flor aderir à animadíssima roda de bisca e três-setes em casa de dona Amélia; até dona Enaide vinha do Xame-Xame para a tarde no carteado. As fanáticas da bisca, as devotas dos três-sete fizeram o possível por conquistá-la, sem obter resultado, como se o falecido houvesse gasto toda a quota de jogo da família, não restando nada para ela. Pior inimigo da jogatina só mesmo o portenho da cerâmica, seu Bernabó; dona Nancy, doida por uma mãozinha de bisca, e o déspota irredutível: no máximo e por favor, os solitários jogos de paciência, nada feito.

Decorria assim tranquila a vida de dona Flor entre as aulas de culinária, as duas turmas cada vez mais numerosas, e as actividades sociais permitidas a seu prudente estado. Não eram pequenos compromissos como pode parecer à primeira vista; enchiam-lhe o tempo inteiro, não lhe sobrando ócios para pensamentos tristes.

Sem falar nas encomendas de recusa impossível para almoço de festa, fino jantar, banquete ou recepção: já de madrugada entregue à trabalheira na cozinha. Sendo muito exigente em relação à qualidade de seus pratos, ao cansaço somava a preocupação.

Vinha ajudá-la uma garota, menina moça dos seus dezasseis anos, filha de outra viúva, dona Maria do Carmo, herdeira de roças de cacau, morando no Areal de Cima desde logo depois do Carnaval e de imediato incorporada à roda de dona Norma. A mocinha, Marilda e morena, uma esperança nos molhos e temperos, tomara amizade de dona flor e não a largava, aprendendo pratos e bolos nas folgas de seu curso pedagógico. Dona Flor sorria ao vê-la em trânsito pela casa cantarolando, os cabelos em alvoroço, o rosto de adolescente tropical demasiado em quebranto e dengue, uma pintura de tão bela; se o velhaco fosse vivo, todo o cuidado seria pouco, ele não mantinha preconceitos de idade.

Como se constata e vê, não faltava o que fazer em sua vida de viúva, o
tempo curto, por
vezes nem dava para os compromissos.

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