sexta-feira, maio 14, 2010


DONA
FLOR
E SEUS
DOIS
MARIDOS


EPISÓDIO Nº 119



Eis dona Dinorá já além dos sessenta: voz estridente, enervante gargalhada, constante agitação. Em aparência a mais solidária e compreensiva velhota; em verdade um “frasco de veneno, cascavel enfeitada com penas de pássaros”, na frase quase poética de Mirandão, eterna vítima dessa categoria de comadres. Frase dita ao jornalista Giovanni Guimarães, ao ver a sessentona passar, muito viúva e sustentáculo da moral, por ocasião do almoço em casa de dona Flor, quando da visita de Sílvio Caldas. Completara, filósofo moralista:

- Quanto mais puta em jovem mais séria na velhice. Ficou donzela e bucho…

- Aquele estrepe? Quem é?

- Não é do nosso tempo, mas já teve nome e apelido. Quem fala muito nela é Anacreon, andou bebendo nessa moringa. Você já ouviu falar, na certa.

Atendia por Dinorá Sublime Cu.

Quase mudo, Giovanni, em espanto e assombro:

- Isso aí? O Sublime Cu tão recordado? Meu Deus!

Prova da vaidade das coisas terrenas, consideraram humildemente os dois, ante tal exibição de virtude e o triste físico do leva-e-traz: atarracada, tronco forte, pernas curtas, oveiro baixo, cabeçorra, champruda. Vestida de luto, como viúva verdadeira, medalhão ao pescoço com a fotografia do comendador, de quem falava como se houvesse sido sua esposa e ele o último homem da sua casta vida. Tipos como Anacreon, vergonha do género humano, era como se não existissem; ela os desconhecia, simplesmente.

Ladina, não ia directa aos assuntos, em acusações frontais; ao contrário, infernava os demais na maciota, parecendo tudo compreender e desculpar, elogiando uns e lastimando outros. Daí a sua fama de bondosa e simpática, os louvores semeados em seu caminho de mexericos. “Criatura boa vai ali…” Quando, por um azar, pegada em flagrante de intriga, dava-se por vítima: quisera fazer um benefício, em paga recebia a negra ingratidão.

Seu Zé Sampaio, homem pacato, cedo na cama com seus imaginários achaques, as gazetas do dia e revistas velhas (adorava ler revistas velhas e almanaques antigos), ao ouvir o vozeirão de dona Dinorá, punha as mãos sobre os ouvidos, em pânico, dizendo a dona Norma, com voz vencida mas não resignada, de quem já não tinha jeito a dar nas aporrinhações:

- Essa mulher é uma filha-da-puta, a maior filha-da-puta que tem por aqui…

- Assim também é má-vontade demais… Ela até que é boazinha…

Por aí se vê quão hábil dona Dinorá: conseguira superar aquela história do filho de Dionísia, quando seu prestígio caíra a zero, voltando a obter o favor de dona Norma. Não, porém o de seu Sampaio.

- Boa filha-da-puta… Veja se consegue, por favor, que ela não meta o nariz aqui no quarto. Diga que estou dormindo, estou descansando… Diga que eu morri…

Quem era dona Norma para impedir dona Dinorá de enfiar o nariz onde quisesse? Ia entrando, íntima da casa, de todas as casas de gente de consideração e dinheiro – para os pobres, bondosa, mas de uma bondade altiva e distante, muito protectora dos desprotegidos, mantendo-os, entretanto, no lugar (inferior) que lhes competia, sem lhes dar asa. Ia enfiando pelo corredor, pelo quarto:

- Dá licença seu Sampaio?

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