terça-feira, maio 18, 2010

DONA FLOR
E SEUS DOIS

MARIDOS

EPISÓDIO Nº 122



Quando o escândalo explodiu, quase dois anos depois – Astrud, com seu ar ingénuo e a barriga prenha de cinco meses, sendo expulsa pela irmã em fúria do teto familiar, o sátiro Franco de buxo farto – prato suculento servido a toda a cidade, dona Dinorá vingou-se do romântico Carlos Bastos (talvez ainda enamorado):

- Viu, bobalhão? A mim, ninguém me engana… baba de calunio não faz filho em moça, o que faz menino é descaração…

Tinha olhos de ver e de prever, um faro de perdigueiro, ninguém escapava aos seus sentidos vigilantes. Aliás, os vizinhos vinham lhe contar seus particulares mais íntimos, para lhe pedir consulta aos naipes de adivinha, à cristalina bola de evidências. Para ela, passado, presente e futuro eram cartas abertas de leitura fácil.

Possuindo ou não reais e profundos conhecimentos de magia, pífia diletante sem maior intimidade com os astros, ou mestra das ciências ocultas do Oriente, manda a verdade proclamar ter sido ela quem primeiro anunciou o novo casamento de dona Flor, quando apenas a viúva aliviava o luto e retomara vida normal, sem sobressaltos nem problemas, recatada existência, distante de qualquer ideia ou pensamento relativo a matrimónio.

Anunciou as bodas e distinguiu a face do noivo muito antes de se falar em noivado, antes certamente de se perceber qualquer sentimento ou interesse. E, se existia da parte do fulano remota inclinação por dona Flor, jamais alguém o soube, talvez nem a si próprio ele o confessasse. Pois bem, acredite-se ou não, dona Dinorá em detalhe o descreveu: senhor moreno, já de meia-idade, alto, robusto, distinto, soberbo quarentão, de modos sérios e afáveis, levando na mão direita, pela haste erguida, um botão de rosa cor de vinho. Assim ela o enxergou na bola de cristal. As damas e os reis, os valetes, os ases de espadas, paus e copas confirmaram-lhe os traços fisionómicos e a honesta disposição de casamento, acrescentando-lhe o ás de ouros bens de dinheiro, estabilidade económica e o título de doutor.

Ora, apesar de moreno, o Príncipe não era de meia-idade, muito menos senhor robusto, alto, soberbo, quarentão. A seu modo distinto e bonito rapaz, mas muito a seu modo extravagante. Difícil, por consequência, emoldurá-lo, mesmo com extrema boa vontade, no retrato do futuro noivo antevisto por dona Dinorá na bola de cristal e por ela revelado às massas populares do Largo Dois de Julho, levando ao auge de excitação, quase da subversão, o combativo sindicato das fuxiqueiras.

Delicado, pálido, dessa palidez dos poetas românticos e dos gigolôs, cabelos negros e lisos, brilhantina e perfume a la vontê, sorriso entre melancólico e persuasivo, sugerindo um mundo de sonhos, elegante de corpo e roupas, grandes olhos súplices, as boas palavras para descrever o Príncipe seriam condoreiras: “marmóreo, lívido, meditabundo, pulcro, a fronte de alabastro e os olhos de ónix”.

Maior de trinta anos, aparentava pouco mais de vinte e a tristeza a sombrear-lhe o rosto fazia parte de seus instrumentos de trabalho, assim como a palavra fácil e o olhar sub-reptício, profissional competente e de sucesso em sua curiosa e rara especialização. Pois de logo informe-
se que
em viúvas se especializara, possuindo curso completo e longa prática.

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