quinta-feira, junho 03, 2010

DONA

FLOR

E SEUS

DOIS

MARIDOS

EPISÓDIO Nº 136


Como sempre sucedia quando iam a qualquer parte com seu Ruas, chegaram o maior atraso: já começara a projecção do noticiário, a sala às escuras e lotada. A muito custo conseguiram acomodar-se, sentando-se os três em filas diferentes e distantes. Dona Flor bem ao fundo do cinema, numa cadeira de ponta, ao lado de um casal talvez de noivos, pois de mãos trançadas e cabeças juntas. A gritaria dos estudantes começou logo às primeiras cenas do filme francês., de acção localizada num cabaré de Pigale repleto de mulheres seminuas. Dona Flor tentando desconhecer os beijos, os suspiros, a esfregação do casal vizinho, esforçava-se por acompanhar o complexo enredo do filme.

De repente sentiu o calor de um hálito de homem em seu pescoço e uma voz feita de delicadeza, a afirmar-se sobre pop gritos, doce murmúrio em seu ouvido, dizendo-lhe frases como versos, aquelas declarações de amor que ela não tivera quando namorada, elogios a seus olhos, a seus cabelos, à sua formosura. Não precisou voltar-se para saber de quem a voz cariciosa, os lindos galanteios. No seu cangote, a respiração do homem era uma cócega, morno alento. Ao ouvido, a voz em elogio e súplica, terno acalanto.

Dona Flor adiantou-se na cadeira querendo colocar distância entre ela e a fila onde o Príncipe obtivera assento; conseguiu apenas perturbar os namorados: o tipo também avançara o busto, persistindo em sua ardente declaração. Dona Flor não o queria ouvir, tampouco queria ver o lascivo espectáculo do casal indiferente ao público em redor desejosa somente de acompanhar a acção do filme, entender a história, difícil entrecho de sexo e violência.

O público gritava cada vez mais pois tivera início a excitante cena do lago: a estrela sensual e quase nua, os seios à mostra, e o actor, um gigante com cara de tarado, sobre ela, numa fúria de bode, numa descaração quase tão grande quanto a do casal vizinho a dona Flor; casal mais sem decência nem vergonha ela nunca vira.

E a voz do tipo atrás a lhe dizer amor, a lhe propor noivado, a suplicar-lhe a graça de uma só visita onde lhe expusesse os seus haveres, suas qualidades, seus propósitos, atirando-lhe aos pequeninos e adorados pés a sortida loja itabunense e um coração leal consumindo-se m fogo de paixão.

O hálito morno do homem em seu pescoço, e sua voz em murmúrio, as frases parecendo estrofes de poema, carícias de palavras. Ah!, filme impossível, o público a berrar, os artistas na descaração, na descaração e em gozo o casal ali agarradinho, e aquela invisível presença perturbadora em suas espaldas, dona Flor num cerco, tonta, sem saída.

Ai, era uma viúva decente e recatada. Mal a enxergou na porta, a espiá-la súplice. De cabeça baixa, dona Flor veio acompanhando os ruas, dona Amélia indignada com o filme, o marido apoiando as críticas meio sem convicção, furioso mesmo e apenas com a maluqueira desses moços estudantes, uns cafagestes. Qual o parecer de dona Flor? Antes não tivesse vindo, os gritos e as risadas a entonteceram, deixando-a quase enferma, mal acompanhando o filme e, ao demais, dois sem vergonha ao lado – uma velhota e um rapazola, vira-os ao acender a luz – na maior patifaria...

Cansada do cinema e da noite da véspera, insone e longa, dona Flor tomou um calmante para adormecer. Mas nem assim se viu, em seu dormir, liberta do galã, do seu hálito, de sua voz e seu convite, dos problemas de homem e casamento sonhando a noite inteira. Sonho mais
esdrúxulo,
sem pé e sem cabeça.

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