domingo, junho 13, 2010




DONA

FLOR

E SEUS

DOIS

MARIDOS



EPISÓDIO Nº 145



Não fora fácil convencê-la, vencer-lhe arraigados preconceitos contra os quais de nada valiam os lógicos argumentos de dona Gisa nem as razões sentimentais de dona Flor. Ao ver, porém, a filha ao microfone, tão graciosa, e a sua voz no ar sobre a cidade, rendeu-se em lágrimas de orgulho e de emoção. Exaltou-se contra o julgamento, quase agredindo o locutor do popular programa, Sílvio Lamenha ou Silvinho simplesmente, pois, a seu ver, Marilda merecera o primeiro lugar, por injusta protecção atribuído a um tal João Gilberto, desafinado sem categoria.

Com sua comadre Dionísia acertara dona Flor comparecer à festa de Oxóssi no candomblé da Axé Afonxá, levando com ela dona Norma e a gringa (curiosíssima) e só não o fazendo por forte resfriado e algum receio (receio que transformou o resfriado em perigosa gripe). Nesses mistérios de macumba e candomblé é melhor não se mexer, as ruas vivem cheias de feitiços e despachos, ebós de forte fundamento, mandingas perigosas, coisa-feita; quem quiser acreditar que acredite, quem não quiser não acredite, dona Flor prefere não tirar a limpo. Dionísia lhe dissera um dia:

- Minha comadre, seu anjo da guarda é Oxum, eu mandei um eluô olhar nos búzios.

- E como é Oxum, comadre Dionísia?

- Pois eu lhe digo que é o Orixá dos rios; é uma senhora de semblante muito calmo e vive em sua casa retirada, parecendo a própria mansidão. Mas vai se reparar, é uma faceira, cheia de melindre e dengue; por fora água parada, por dentro um pé-de-vento. Basta lhe dizer, minha comadre, que essa enganadeira foi casada com Oxóssi e com Xangô e, sendo das águas, vive consumida em fogo.

Tanta correria, tanto movimento, porque com o Príncipe se fora também sua paz sua tranquilidade, aquela vida amena, sem problemas, aquele dormir sem sonhos cada noite, de um sono só, reparador.

Desde o absurdo sonho na roda da ciranda, seu sossego terminara. Aos poucos, dia a dia, a inquietação de dona Flor foi aumentando até tornar-se angústia permanente: ao correr do tempo de viúva, num crescendo.

Não mais, porém, a partir daquela noite de cinema e sonho, retornou de todo à calma indiferença, à íntegra sensação de vida plácida, talvez vazia mas serena: dona Flor quieta em seu canto e em seu trabalho. Mesmo sendo em aparência pacata e agradável sua vida – uma água parada - não tivera mais um dia de completo repouso: seu peito em fogo consumido.

Recatada viúva mas coagida a defender o seu recato. Não contra a insolência de uma proposta indecorosa; quem, conhecendo-a, ousaria sequer um galanteio? Quanto aos estranhos, atrevidos postulantes, coiós de esquina, esses em geral emudeciam ao vê-la tão discreta e séria. Mas se ainda assim alguma piada arriscavam ao seu passar, elogios a seu porte (“que bunda rebolosa”) e a detalhes de seu corpo (“ai, os peitinhos tão durinhos”) ou descarados convites (“vamos fazer menino, minha bela”), perdiam a inspiração, a graça ou a independência, e o tempo: ia em frente dona Flor como se fosse cega surda e muda, em sua modéstia e em seu orgulho de viúva, coagida a defender o seu recato contra ela própria: contra os errantes pensamentos, sonhos ruins, contra o desperto e árduo desejo, aguilhão em sua carne.

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