terça-feira, junho 29, 2010

DONA
FLOR
E SEUS
DOIS
MARIDOS

Episódio Nº 158




APELO DE DONA FLOR EM AULA E EM DEVANEIO


Me deixem em paz com meu luto e minha solidão. Não me falem dessas coisas, respeitem o meu estado de viúva. Vamos ao fogão: prato de capricho e esmero é o vatapá de peixe (ou de galinha), o mais famoso de toda a culinária da Bahia. Não me digam que sou jovem, sou viúva: morta estou para essas coisas. Vatapá para servir a dez pessoas (e para sobrar como é devido).

Tragam duas cabeças de garoupa fresca – pode ser de outro peixe mas não é tão bom. Tomem do sal, do coentro, do alho e da cebola, alguns tomates e suco de limão.

Quatro colheres das de sopa, cheias com o melhor azeite doce, tanto serve português como espanhol; ouvi dizer que o grego ainda é melhor, não sei. Jamais usei por não encontrá-lo à venda.

Se encontrar um noivo, que farei? Alguém que retome meu desejo morto, enterrado no carrego do defunto? Que sabem vocês, meninas, da intimidade das viúvas? Desejo de viúva é desejo de deboche e de pecado, viúva séria não fala dessas coisas, não pensa nessas coisas, não conversa sobre isso. Me deixem em paz, no meu fogão.

Refoguem o peixe nesses temperos todos e o ponham a cozinhar num bocadinho d’água, um bocadinho só, um quase nada. Depois é só coar o molho, deixá-lo à parte e vamos adiante.

Se meu leito é triste cama de dormir, apenas, sem outra serventia, que importa? Tudo no mundo tem compensações. Nada melhor que viver tranquila, sem sonhos, sem desejos, sem se consumir em labaredas, com o ventre aceso em fogo. Vida melhor não pode haver que a de viúva séria e recatada, vida pacata, liberta da ambição e do desejo. Mas, e se não for meu leito cama de dormir e, sim, deserto a atravessar, escaldante areia do desejo sem porta de saída? Que sabem vocês da intimidade das viúvas, de seu leito solitário, de seu carrego de defunto? Aqui vieram para aprenderem a cozinhar e não para saberem o preço da renúncia, o preço que se paga em ânsia e solidão para ser viúva honesta e recatada. Continuemos a lição.

Tomem do ralo e de dois cocos escolhidos – e ralem. Ralem com vontade, vamos, ralem; nunca fez mal a ninguém um pouco de exercício (dizem que o exercício evita os pensamentos maus: não creio). Juntem a branca massa bem ralada e a aqueçam antes de espremê-la: assim sairá mais fácil o leite grosso, o puro leite de coco sem mistura. À parte o deixem.

Tirado esse primeiro leite, o grosso, não joguem a massa fora, não sejam esperdiçadas, que os tempos não estão de desperdício. Peguem a mesma massa e a escaldem na fervura de um litro de água. Depois a espremam para obterem o leite ralo. O que sobrar da massa joguem fora, pois agora é só bagaço.

Viúva é só bagaço, limitação e hipocrisia. Em que nação enterram a viúva na cova do marido? Em que país tocam fogo no seu corpo junto com o corpo do defunto? Antes assim, de uma vez queimada e em cinza em lugar de consumir-se em fogo lento e proibido, de queimar-se por dentro em ânsia e em desejo; por fora hipocrisia, um recato de fazendas negras,
os véus cobrindo
uma aflita geografia de medo e de pecado. Viúva é só bagaço e aflição.

Site Meter