domingo, junho 20, 2010



O EVANGELHO
segundo
JESUS CRISTO


José Saramago


Por uma coincidência, concerteza muito invulgar, estava de férias na praia, a ler, creio que A Jangada de Pedra de José Saramago, quando a comunicação social anunciou a atribuição ao escritor do Prémio Nobel.

Lembro-me que segurei com força o livro entre as minhas mãos enquanto sentia invadir-me por um misto de enorme orgulho e alegria.

Eu era um admirador de José Saramago desde a leitura do Memorial do Convento. Aquela forma de escrita, aquele enredo, aquela enigmática e misteriosa personagem da Blimunda, deixaram-me surpreendido, encantado.

Recordo, que em determinadas passagens da leitura me levantava, livro nas mãos, dirigia-me à secretária do meu amigo Cláudio e dizia-lhe:

- "Cláudio, ouça-me aqui esta passagem…"

Mas foi o Evangelho segundo Jesus Cristo o livro que mais me tocou e enterneceu.

Um “ayatola” qualquer da religião católica de Roma, que então era secretário de Estado, proibiu a candidatura desta obra a um prémio literário europeu. Triste e revoltado, José Saramago saiu de Portugal e foi residir para Espanha, para a ilha de Lanzarote, que já tive a oportunidade de conhecer e cuja beleza, de uma riqueza agreste no geral e delicada no pormenor, contudo surpreendente, ainda a lembrar a violência das erupções vulcânicas que estiveram na sua génese, parece ter alguma coisa a ver com o autor e a sua obra.

Um pequenino trecho (pags. 363) de uma passagem deste livro, já na sua parte final, livro que a intransigência, o sectarismo e as muralhas que nascem em alguns espíritos, tornaram polémico. Inútil, estúpido, e despropositadamente polémico…:


- “Manhã de nevoeiro. O pescador levanta-se da esteira, olha pela fresta da casa o espaço branco e diz para a mulher, Hoje não vou ao mar, com uma névoa assim até os peixes se perdem debaixo de água. Disse-o este, e, por iguais ou parecidas palavras, também o disseram os demais pescadores todos, duma margem à outra, perplexos pela extraordinária novidade de um nevoeiro impróprio da época do ano em que estamos. Só um, que pescador de ofício não é, ainda que com os pescadores seja o seu viver e trabalhar, assoma à porta da casa como para certificar-se de que é hoje o seu dia, e, olhando o céu opaco, diz para dentro, Vou ao mar. Por trás do seu ombro, Maria de Magdala pergunta, Tens de ir, e Jesus respondeu, Já era sem tempo, Não comes, Os olhos estão em jejum quando se abrem de manhã. Abraçou-a e disse, Enfim, vou saber quem sou e para o que sirvo, depois, com uma incrível segurança, pois o nevoeiro não deixava ver nem os próprios pés, desceu o declive que levava à agua, entrou numa das barcas que ali se encontravam amarradas e começou a remar para o invisível que era o centro do mar.”
Aos 88 anos, a morte interrompeu agora, definitivamente, a produção literária de José Saramago... um grande prejuizo para todos nós, independentemente
da nacionalidade, convicção religiosa ou ideologia política.

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