terça-feira, julho 06, 2010


DONA
FLOR
E SEUS
DOIS
MARIDOS

Episódio Nº 164


Quando tivera início o interesse do farmacêutico, ninguém sabe; não é fácil determinar hora e minuto exactos para o começo do amor, sobretudo daquele que é o definitivo amor de um homem, o amor de sua vida, dilacerante e fatal, independente do relógio e do almanaque. Em dia de confidências, tempos depois, doutor Teodoro confessou a dona Flor, com certo acanhamento risonho, admirá-la de há muito, de antes da viuvez; do pequeno laboratório dos fundos da farmácia ela a via cruzar o Largo, seguindo seus passos pelo Cabeça, com absorta mirada. “Se alguma vez me decidir, só casarei com uma mulher assim, bonita e séria”, monologava junto aos tubos de ensaio, aos frascos de drogas. Sentimento puro e platónico, é claro, não era homem de influir-se por mulher casada e de envolvê-la em pensamentos menos nobres, pondo-lhe olhos de gula ou melhor (para repetir a própria expressão do boticário, precisa e elegante, enfeitando com suas galas estas letras vulgares e populacheras) “culposos olhos de concupiscência”.

Quem primeiro notou a inclinação do farmacêutico foi dona Êmina, senhora, aliás, de pouco se preocupar com a vida alheia: mexericava apenas o estritamente necessário para não ficar em atraso com os sucessos em seu redor. Ao lado das outras, ávidas de qualquer fuxico, dona Êmina era discreta e timorata.

Foi no dia do trote dos caloiros das faculdades, nos começos de Abril, quando os estudantes atravessam as principais ruas e avenidas, comemorando o início do ano lectivo. Numa longa procissão, sob a batuta dos veteranos, os novatos – de cabeça rapada à navalha, envoltos em lençóis, amarrados uns aos outros com uma corda como fieira de escravos - conduziam cartazes de crítica ao governo e à administração, com piadas sobre a vida cara e a incapacidade dos políticos.

Vindo da Faculdade de Medicina, no Terreiro de Jesus, o desfile cruzou a cidade em direcção à Barra, parando em certos locais como a praça Castro Alves, São Pedro, Piedade, Campo Brande. Nesses pontos de maior concentração de curiosos, os veteranos faziam as delícias dos assistentes com bestialógicos recitados do alto dos jegues.

Os moradores das adjacências do Largo Dois de Julho e do Cabeça movimentaram-se para São Pedro apenas ouviram as cornetas e os clarins anunciadores, na Ladeira de São Bento. Num grupo álacre iam dona Norma, dona Amélia, dona Maria do Carmo, dona Gisela, dona Êmina, dona Flor.

Segundo a informação de dona Êmina, precisa e concreta, o doutor Teodoro encontrava-se bem junto ao seu balcão da farmácia, indiferente aos clarins, aos asnos fantasiados de professores e de homens públicos, ao trote, conversando com a empregada e a moça da caixa, quando as enxergou. Tão nervoso ficara que dona Êmina, estranhando os modos do
doutor, o manteve de
olho, podendo assim seguir a passo e passo suas suspeitas andanças.

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