segunda-feira, julho 12, 2010


DONA
FLOR
E SEUS
DOIS
MARIDOS


EPISÓDIO Nº 169



Casar e logo, ter seu marido, viver com ele vida decente e honesta, como era de sua natureza e de sua obrigação, em vez d arder em sonhos, solitária, a morder os lábios, a ranger os dentes, contendo-se somente por medo e preconceito. Ela, dona Norma, não permitiria perdesse dona Flor tão magnífica oportunidade, oportunidade única, outra melhor é impossível, e a perdesse por falso recato, por tolice, por estupidez. Não, três vezes, não.

Assim, após a aula vespertina, na qual dona Flor ensinou às alunas a receita de um doce de gelatina e coco apelidado “creme do homem”, nome a provocar piadas – “ai, creme mais saboroso!” -, dona Norma veio buscá-la e a arrastou ao Cabeço, a pretexto de comprar flores. Compra mais difícil, dúzia de angélicas de escolha trabalhosa. Não se dispunha dona Norma a compor o buquê, sempre insatisfeita ante o espanto do vendedor, o velho negro Cosme de Omolu, pois doutor Teodoro, sumido nas profundezas da farmácia, não se fazia visível. Depois das flores foram os acarajés de Vitorina e nada do farmacêutico aparecer ao balcão. Mas dona Norma não era de dar-se por vencida: embarafustou sem aviso, farmácia adentro, arrastando dona Flor em crise, a pedir ao caixeiro um pacote de algodão. Queria dona Flor enfiar-se terra adentro, dona Norma num vozerio, numa saliência, onde já se viu tanta presepada?

Ao fundo, no pequeno laboratório, por detrás dos grandes frascos azuis e vermelhos, como uma gravura do livro de alquimia, viram doutor Teodoro moendo sais e venenos num pilão de pedra. Tinha posto os óculos e, muito atento, após moer, pesava, em pequena balança de brinquedo, quantidades mínimas de pó e sais. Concentrado no mistério do fabrico da receita, não se deu conta da presença das senhoras no estabelecimento, como se até ele não chegasse a voz de dona Norma a repetir um caso saído nas gazetas.

Deixando a balança, o boticário punha num tubo de ensaios o pó resultante dos minerais moídos, em ínfimas quantidades, juntando-lhes vinte exactas gotas de um líquido incolor, e logo tudo foi uma fumaceira avermelhada a circundar de ciência e de magia a cabeça morena e forte do doutor.

Dona Norma não perdeu a deixa, sua voz ressoou, aduladora:

- Repare, Flor, minha querida, doutor Teodoro até parece um bruxo todo cercado de enxofre… T’esconjuro!

Estremeceu o doutor ao ouvir o nome, não o seu, mas o de dona Flor: ergueu os olhos sobre os óculos (úteis apenas para enxergar de perto), constatou a presença da poesia entre os remédios, vacilou em suas bases mais recônditas, um frio no baixo-ventre. Quis erguer-se, ficou atarantado e zonzo e lá se foi para o chão o tubo de ensaio em mil cacos e o remédio quase pronto (mezinha para aliviar da tosse crónica de dona Zezé Pedreira, uma velhinha de cristal, da Rua da Forca) virou mancha escura no chão, enquanto a fumaça de sangue persistia em torno ao austero rosto do doutor.

- Ai, meu Deus… - disse dona Flor.

E nada mais foi dito nem aconteceu, apenas dona Norma riu-se pagando a conta do algodão, pois era cómica a figura do droguista, semi erguido na cadeira, a mão no ar, como se ainda sustentasse o tubo de vidro, os óculos resvalando pelo nariz, mudo e estupefacto.

De todo encabulada, morta de sem jeito, saiu dona Flor porta afora, enquanto dona Norma estendia um olhar cúmplice ao romântico boticário, como uma corda a um náufrago. Dr. Teodoro tentou articular uma palavra, não pôde.

Dona Norma alcançou dona Flor na esquina: ainda mantinha alguma dúvida sobre a influência do farmacêutico? Ou queria, por acaso, numa exigência absurda para viúva roída de desejo, gemendo no alvéu de luto, candidato de melhor estirpe, classe e compleição? Impossível melhor partido, minha santa: doutor de diploma e anel de ametista verdadeira, proprietário estabelecido, bonitão, todo composto de colete e ouro, forte
de saúde, morigerado de actos, um
senhor de bem, soberbo quarentão.

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