sexta-feira, julho 09, 2010


DONA
FLOR
E SEUS
DOIS
MARIDOS


EPISÓDIO Nº 168


Agora era uma viúva pousada e reflectida, incapaz de incontinências, de sentimentos e acções precipitadas, perdoáveis em mocinhas em idade de namoro, inadmissíveis em senhoras na casa dos trinta e nos véus de luto (mesmo queimando um fogaréu por dentro). Se algo houvesse, já veriam com o tempo se um sentimento de amor desabrocharia, na tranquila medida da ternura e da compreensão, sem as violências juvenis do delírio nos cantos escusos, nos pés de escada. Talvez um sentimento assim, amor maduro e bonançoso nascesse num chão de discreto idílio. Dona Flor achava até possível, pois, como já dissera não sendo o doutor antipático e feio, não lhe tinha aversão, achando-o atraente, como agora se dava conta. E eis dona Norma realizando já noivado e casamento, antevendo dona Flor feliz como sempre merecera e nunca o fora.

- Ah!, minha santa que beleza vai ser! Agora não seja tola, não seja tola, não se tranque em casa, não amarre a cara…

Porque dona Flor, se bem confessando interesse pelo boticário, logo acrescentava sua decisão de não sair a demonstrá-lo, a se oferecer, rebolando-se à frente da drogaria, exibindo suas necessidades, seus olhos fundos de Quaresma, de abstinência dura, de jejum forçado. Isso jamais, Norminha.

- E eu não vou admitir que você esperdice uma ocasião como essa…

Longo tempo levou dona Norma a persuadir a viúva; não fosse tola nem bancasse a indiferente. Quem estava com dona Flor, ardendo em brasa, necessitada de casar e casar logo para não terminar histérica ou doida-mansa ou bem para não sair dando por aí a qualquer um, em vida de castelo, de viúva fácil a encher de chifres a caveira do defunto, agreste e viçosa plantação de galhos em sua cova honrada; ah!, assim tão confessadamente ávida de calor de homem, de um balancé de cama, não podia bancar de viúva fiel até à morte, de luto eterno e obstruída greta, xibiu enterrado no carrego de falecido, murcha flor aos pés do morto, inútil e fanada:

- Só tendo serventia para fazer pipi…

Melhor se resolver de vez e aceitar marido, viver com ele vida decente e honesta, renovando-se em amor e alegria, mantendo honrada, limpa e tranquila em sua tumba a memória e a carcaça do primeiro. Sem muito nele falar para não ofender o sucessor. Aliás, nos últimos meses dona Flor como que esquecera o nome e o apelido do finado. Porque as comadres o arrenegavam e cobriam de insultos sua lembrança, dona Flor, polémica, o trouxera na boca o dia inteiro. Depois o trancou dentro de si, como jóia preciosa e rara, quando, as vizinhas e amigas o deixaram em paz em seu jazigo; se ainda alguém o recordava não o dizia. Pois então era só continuar assim, retirando naturalmente da sala o retrato do perdido com seu riso cínico de desfaçatez (e também, porque negar? Com sua graça irresistível), guardando-a no fundo de um baú e no coração. Na parede da sala (e na xoxota) a presença do segundo, e que segundo, minha filha! Beleza de homem na força da idade, e que distinto!

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