quinta-feira, julho 29, 2010


DONA FLOR
E SEUS DOIS
MARIDOS

Episódio Nº 184




Tendo comprovado mais uma vez a ordem absoluta e o irrepreensível asseio, dona Flor foi saindo devagar, em seu passo de obesa:

- Fiquem à vontade seus anjos… Não preciso desejar boa noite… - mesmo querendo ser maliciosa era apenas bonachona e maternal: conhecera doutor Teodoro ainda estudante, contemporâneo e companheiro de seu filho, o médico João Baptista. – Com vocês, sabem quantos casais passaram a lua-de-mel neste quarto, depois de estarmos aqui em São Tomé? Dezassete… Ou dezoito? Nem sei, só contando…

Um agrado no rosto de dona Flor, um piscar de olhos para o farmacêutico:

- Durmam de um sono só, sossegado… - a risada frouxa, balançando-lhe as bochechas, ressoou pela casa, trazendo do quarto da frente a voz do doutor Pimenta numa repreensão (lá está Filo a atazanar os hóspedes.)

- Vem dormir, mulher… Deixa os outros em paz…

_ Só estou vendo se falta alguma coisa… - um último olhar da porta: - Meus pombinhos…

Viram-se dona Flor e doutor Teodoro um diante do outro no quarto enorme: encabulados, inibidos. Inibição a acumular-se durante o dia com as piadas das comadres, com as facécias das alunas. Os chistes idiotas, as chalaças dos vizinhos. Tanto no acto civil como na Igreja cada um dos convidados revelou-se mais engraçadinho e persistente em sua malícia. O banqueiro Celestino dissera cada uma de arrepiar, era português de boca suja; o táxi partindo e ele ainda em deboche e arrelia. São sempre assim as bodas de viúva, no tempero da galhofa rude, com o sal dos ditos ordinários. Pois se até dona Flor, a pessoa melhor e mais acolhedora, se até ela saíra do sério para fazer troça, recomendando prudência ao boticário. Ali, no quarto, a inibição aumentara. Morrendo de sem jeito, permaneciam mudos, sem se olhar, como dois matutos.

Doutor Teodoro andou para os grandes janelões abertos sobre o jardim no visível intento de fechá-los. Por eles a noite penetrara inteira quarto adentro: o luar, as estrelas, o coaxar dos sapos, um rumor de caranguejos e aratus, brilho de peixes como lâmina de aço no escuro do mar, e a mariposa azul-marinho com manchas de ouro, obstinada em torno do lustre. A brisa vinha de entre os coqueiros e as mangueiras; num baque surdo, morcegos derrubavam sapotis em voo raso de sombras e fantasmas no charco de grilos e de rãs.

Dona Flor num ímpeto – era preciso transpor aquela barreira a separá-los, aquele impasse inicial e bobo – veio para junto do marido, debruçando-se no peitoril da janela. Doutor Teodoro vencendo a timidez, aconchegou-a em seu peito; com a mão livre apontou a noite de lua, no rumo da distância.

- Está vendo, querida? – dizia querida ainda a medo, num esforço – Ali, no alto? É o Cruzeiro do Sul…

Eis que ela sempre desejara vê-lo, desde menina.

- Onde? Me mostre, meu querido…

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