quinta-feira, agosto 12, 2010


DONA
FLOR
E SEUS
DOIS
MARIDOS


Episódio Nº 196



Que fazer com esse dinheiro guardado no banco, pelo amor de Deus? Dona Flor, de repente, sentiu o dinheiro como coisa inútil, pois não o tinha à mão, não podia procurá-lo atrás do rádio para compra, esmola ou pagamento. Mas dona Norma, experiente dessas coisas, riu-se do preconceito bancário da vizinha. Acumulasse seu dinheiro na Caixa e deixasse as despesas por conta do marido. Enquanto possuísse sua caderneta e o talão de cheques não ficava na dependência do doutor para cada alfinete, para a vaidade de um vestido a mais, o desperdício de um chapéu. Não viveria atrás do esposo, de salva em punho a pechinchar tostões para essas pequenas e múltiplas despesas: o dinheiro assim suplicado tinha o sabor de espórtula, humilhante.

Dona Norma conhecia esse travo amargo, sendo seu Zé Sampaio resmungão e algo somítico. Por isso mesmo à custa de uma ginástica orçamentária digna de emérito financista – com apertos, pechinchas, cálculos, economias, golpes diversos, erros nas contas, nas somas, nas subtracções, nos totais, vinte mil réis aqui, cinquenta ali, cem acolá – e se preciso, a mão nocturna no bolso do marido, dona Norma possuía, ela também, seu vasqueiro pé de meia a lhe permitir certos requintes de elegância e o atendimento de sua enorme clientela de compadres e afilhados, de velhos, de doentes, de trabalhadores sem emprego, de cachaceiros e malandros, e as dezenas de moleques seus prediletos.

- Por exemplo, minha santa: o doutor completa anos e você não tem cruzado nem vintém. Vai pedir dinheiro a ele para comprar presente? Já pensou: “Teodoro, meu filho, me dá algum para eu comprar uma cueca e te oferecer de aniversário?” Eu, minha linda, não dou essa ousadia a Zé Sampaio.

Com isso concordava dona Flor, é claro; sua restrição era a dinheiro em banco, cifra inscrita numa caderneta, não moeda viva a seu imediato alcance. De súbito seu pé-de-meia desaparecia de suas vistas; como manejá-lo nessa fria caderneta, nessa conta a juros? Tinha seus hábitos, devia mudá-los agora, pois, no dizer da amiga, seus antigos costumes eram de pobre, de mulher de mísero funcionário ainda por cima jogador a lhe dissipar os proventos da escola, vivendo na prática às suas custas, mais gigolô do que marido; eram costumes de viúva sem arrimo a sustentar-se com seu trabalho dele tirando o de comer, o de vestir, o aluguel da casa e demais despesas. Hábitos de cigano, de gentinha, já dissera o doutor; costumes da pobreza, sem dinheiro para banco, para juros e talão de cheques, confirmara dona Norma.

Agora, porém, mudara a posição social de dona Flor e sua fortuna. Se não rica de desperdício, tampouco a pobretana de antes; quando muito e por modéstia, remediada e bem remediada. Subira de uma vez vários degraus, do chão dos pobres para as alturas da vizinhança mais graúda: os argentinos da cerâmica, o doutor Ives com o seu consultório médico e o emprego público, os Sampaios com a sua boa loja de sapatos, os Ruas das invejáveis representações – a par com a aristocracia das redondezas, para gáudio de dona Rozilda, finalmente de genro à sua medida. Segundo seu Vivaldo da funerária, informante respeitável, sempre curioso da situação financeira dos amigos, doutor Teodoro, equilibrado, sério e trabalhador, iria longe:

- Não tarda a abocanhar a farmácia toda…

Assim foi aberta conta por dona Flor na Caixa Económica, a crescer todos os meses, e assim teve começo uma segunda ordenação de princípios em sua vida. Como muito bem dizia o farmacêutico, a desordem, a barafunda, os hábitos desregrados levam os casais à discussão, ao desentendimento, primeiro passo para a desarmonia
conjugal, para os atritos e a distância entre
os esposos.

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