terça-feira, agosto 10, 2010


DONA
FLOR
E SEUS
DOIS
MARIDOS


Episódio Nº 194




- Milagre nenhum, minha querida, só um pouco de método que faltava. Acontece que, com minha mãe entrevada, tive que tomar conta da casa e me acostumei à ordem. Em nossa casa ainda é mais necessário ser metódico por se tratar de residência de família e escola ao mesmo tempo… Já que você faz questão de manter a escola. Por mim, como já lhe disse, acabaria com essa trabalheira… você não tem necessidade, ganho bastante para…

- Já discutimos sobre isso, Teodoro, e já resolvemos não falar no assunto. Por que voltar a essa discussão?

- Você tem razão, flor, e desculpe se insisti… Não voltarei a debater essa matéria a não ser a seu pedido. Fique descansada, minha querida, e me perdoe, não quis lhe abusar…

Era “meu querido” para cá e “minha querida” para lá, com afecto e urbanidade, sendo doutor Teodoro de opinião que o trato gentil e a cortesia são complementos do amor, imprescindíveis. Jamais se dirigiu à esposa sem atenção afectuosa, esperando dela a mesma afável polidez de tratamento. Veio e lhe beijou a face, desculpando-se por ter trazido à baila o desagradável tema.

Ainda noivo, ele propusera a dona Flor, como antes se contou de passo, fechar a escola, arquivando aulas e alunas, diplomas e receitas, o turno da manhã e o vespertino. Em detalhado cômputo de seus haveres e de sua situação na firma de drogas e mezinhas, doutor Teodoro lhe demonstrou por a mais b a inutilidade de manter a escola pois dona Flor já não tinha precisão de dinheiro para despesas e caprichos; estava ele, felizmente, em condições de garantir-lhe o indispensável e o supérfluo, mesmo certo luxo honesto, sem larguezas de perdulário, mas sem aperturas de forreta. Ela não mais precisava de trabalhar: o boticário, ao pedir-lhe a mão, se dispunha a sustentá-la, a cobrir-lhe os gastos, todos. O que era, aliás, bem fácil, não sendo ela de esbanjamentos e dissipações.

Dona Flor não aceitou. Bateu o pé, manteve a escola, suspendendo as aulas apenas durante os dias de lua-de-mel em São Tomé. Aproveite-se a deixa para dizer como, na volta do casal, as alunas sapequíssimas puseram a professora na berlinda, numa pagodeira de risos e pilhérias maliciosas, por vezes chulas e, no que tange a Maria Antónia, desagradáveis, pois a desassuntada quis saber qual entre os dois esposos “o de melhor chupiça, o de estrovenga mais forçuda e doce”.

Voltando, porém, à conversa com o doutor quando do noivado, dona Flor fechou a questão: preferia continuar viúva a terminar com a escola. Desde menina no hábito do trabalho, cedo se habituara a ter o seu dinheiro. Se não fosse isso, como teria se arranjado quando da celebração do primeiro casamento e por ocasião da viuvez?

Quando fugira de casa tinha um dinheirinho junto e foi com ele que pagou móveis e papéis do casamento, contrato de aluguel e as despesas dos primeiros dias. E se não fosse a escola, com fazer quando de repente enviuvou?

O finado nada deixara de seu a não ser dívidas: não havia sucursal de banco em salvador onde não se encontrasse um papagaio com sua garbosa assinatura, nem amigo ou conhecido a quem o picareta não tivesse esfaqueado. Desencarnara, ao demais, em pleno Carnaval, época de despesas gordas e fatais.

Não fosse a escola, e dona Flor ter-se-ia visto em completo alvéu, sem vintém para enterro e o mais. Por tudo isso dava tanta importância a seu
trabalho, a suas economias, seus cobres em
secreto esconderijo.

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