sexta-feira, agosto 27, 2010

DONA
FLOR
E SEUS
DOIS
MARIDOS


Episódio Nº 209



Vendo-o tão solene e grave, ao doutor, com o seu grego e o seu latim, o dedo em riste, os colegas a escutá-lo com atenção e deferência, dona Flor dá-se conta da importância do esposo. Não é um qualquer, bem o diz dona Rozilda, os vizinhos têm razão. Deve orgulhar-se dele, agradecer à Divina Providência, que lhe enviara tão bom marido, dádiva do céu. Chegara ao demais na hora certa, quando já não suportava seu estado de viúva, na eminência de dar corda e ânimo a qualquer atrevido, de abrir as portas de sua casa e as coxas ao primeiro vagabundo pálido e súplice, como o Príncipe Eduardo das Viúvas. Valha-nos Deus, do que escapara!

Se o farmacêutico não houvesse surgido no balcão da Drogaria Científica no dia do trote dos calouros, ela, dona Flor, em vez de estar ali, cercada de consideração, naquela sala onde ilustres doutores discutiam eruditos temas, rolaria provavelmente de mão em mão nos castelos, em deboche e depravação, perdidas sua honra, suas amigas, suas alunas, terminando quem sabe onde…

Estremece no horror daquele pensamento. Suas palmas ao fim do discurso do doutor Teodoro contêm não só o entusiasmo mas a gratidão. Ele a salvou e é um homem de respeito. Deve orgulhar-se do marido.

Da mesa directiva para onde volta, doutor Teodoro busca com os olhos a esposa e recebe o estímulo de um sorriso, prémio maior para seu esforço e brilho. A discussão continua: ocupa a tribuna o doutor Nobre, cabeça de muito tutano sem dúvida, mas voz ciciada e neutra, em tom menor, irresistível convite ao sono.

Dona Flor quer reagir mas suas pálpebras pesam cada vez mais. Sua última esperança é o doutor Diniz, tribuno famoso desde os tempos de estudante, professor notável, autor de Galénica Digitalis – “communia stabilisata”, tratado definitivo. Mas nem ele nem os demais a sucederem-se no debate conseguiram evitar os cochilos de dona Flor. E não só de dona Flor, dona Sebastiana dorme a sono solto: seu busto imponente sobe e desce e o ar escapa da sua boca num assobio. Dona Rita tem os olhos apertados, de quando em quando tira uma pestana, acorda em susto. Dona Paula resiste certo tempo, depois se entrega, a cabeça no ombro do marido. Só dona Neusa com suas fundas olheiras, está fresca e repousada, só ela não sente o mormaço, nem a monotonia das fórmulas e dos conceitos, como se toda aquela ciência lhe fosse familiar. Seus olhos acompanham os vaivéns do rapazola empregado da Sociedade a encher de água um copo colocado na tribuna para os oradores. Já lhe escolheu apelido: 914, injecção de muita fama, tiro e queda contra a sífilis.

Dona Flor cabeceia, montou-lhe o sono no cangote. Muito ao longe pareceu-lhe ouvir a voz do marido. Um esforço a trás à tona, doutor Teodoro discursa pela segunda vez. Não entendo nada disso, meu querido, fórmulas de química e botânica, espessos argumentos. Perdoa-me senão consigo resistir ao sono, sou uma vulgar dona de casa, uma burra, por demais ignorante, não sou feita para essas culminâncias.

Acordam-na os aplausos, bate palmas, sorri para o marido, envia-lhe um beijo com a ponta dos dedos.

A sessão pouco mais durou e as mulheres, libertas, reuniram-se em sorridente grupo para as despedidas.

O doutor Teodoro esteve magnífico… - comentou dona Sebastiana (como o sabe se dormira o tempo todo?).

- Doutor Emílio, que portento! – dona Paula repete frases ouvidas em
reuniões anteriores –
Doutor Teodoro um sabichão.

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