quinta-feira, agosto 26, 2010


DONA
FLOR
E SEUS
DOIS
MARIDOS


Episódio Nº 208


Relatório extenso, com ampla análise do debate, encontra-se na Revista Brasileira de Farmácia, de Paulo, financiada pelos grandes laboratórios, não escondia a revista a sua posição a favor dos produtos manufacturados. Não deixou, no entanto, de conceder justo relevo às brilhantes intervenções do doutor Madureira, intransigente e douto adversário, a quem rendemos nossas homenagens. Intransigente e douto – quem o diz, com toda a sua autoridade, é a Revista Brasileira de Farmácia, não somos nós, incondicionais do doutor.

Muito esforço fez dona Flor para acompanhar e entender o impetuoso debate: manda a verdade que se diga não lhe ter sido isso possível. Por amor ao esposo e por amor-próprio gostaria de manter a atenção presa aos oradores, mas, desconhecendo teses e fórmulas, soando-lhe rebarbativas aquelas palavras e frases em línguas mortas, não conseguiu concentrar-se nos discursos.

Seu pensamento perdeu-se vagabundo em matérias menos filosóficas, indo dos problemas da escola, com os disse-que-disse de Maria Antónia tão divertidos (chegou a sorrir em meio aos fortes argumentos do doutor Sinval Costa Lima, o da jurubeba), à preocupação com Marilda, cada vez mais obstinada e impaciente em sua decisão de exibir-se aos microfones, exemplo – segundo doutor Teodoro – da péssima influência das actrizes de cinema sobre a juventude. Tornara-se respondona e desobediente, estabelecera relações com um sujeito do meio radiofónico, Oswaldinho Mendonça, e o dito que lhe acenava com programas e cachés. Dona Maria de Carmo, por sua vez, mantinha um controle total sobre os menores passos e gestos da estudante, pondo-a de castigo, proibindo-a de sair de casa.

Quando dona Flor se deu conta, quem estava ao microfone não era Marilda e, sim, doutor Teodoro. Tentou seguir-lhe a dialética, apreendendo-lhe os argumentos com que ele confundia os adversários. O rosto grave, a face circunspecta, os gestos polidos mesmo quando fogosos, era a imagem do homem digno, do íntegro cidadão a cumprir o seu dever – no momento seu dever de farmacêutico, honrando seu diploma de doutor (mesmo contra os seus interesses de comerciante).

Sempre a cumprir o seu dever, sempre íntegro cidadão. Na véspera, à noite, com a mesma competência e sisudez, cumprira seu dever de marido ante a esposa, na cama.

Por estar nervosa, de sensibilidade à flor da pele (Marilda aparecera numa crise de lágrimas e soluços a falar em suicídio: “ou cantar na rádio ou morrer”, eis sua fanática plataforma); significara discretamente ao marido, em dengues e negaças, sua vontade do bis, naquela noite facultativa, pois era quarta-feira.

Sentira a breve vacilação do doutor, mas como já rompera a timidez e a pudicícia, demonstrando seu anseio nele persistiu. Sem mais hesitar, o doutor atendeu-lhe o desejo e pela segunda vez cumpriu gostosamente seu dever.

Compreende agora dona Flor, na sala de debates, a causa da indecisão do esposo: desejava evitar a fadiga, querendo manter corpo e cérebro em repouso para a noite seguinte, na Sociedade. Entre seus vários deveres dividia ele tempo e esforço.

O bis da véspera não o cansara, no entanto, pois firme na tribuna permanecia em latinório
(ou seria francês aquela língua?): fórmulas soando ao ouvido como versos bárbaros.

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