terça-feira, agosto 24, 2010


DONA
FLOR
E SEUS
DOIS
MARIDOS


Episódio Nº 206



Teve o Regulador Gesteira, o Sabão Caboclo – um negrinho azul, ai minha Nossa Senhora!, o Tiro Seguro, o Maravilha Curativa. Este último representou uma traição de dona Neusa à activa classe dos caixeiros de farmácia, da qual fora até então exclusiva: galante seminarista em férias nas vizinhanças, possuía para a ávida Neusoca duplo sabor de pecado conta a lei dos homens e contra a lei de Deus.

Dona Paula, esposa do doutor Ângelo Costa, da farmácia Góias, veio estudar culinária na Sabor e Arte, revelando bastante vocação. Foi ela a única aluna provinda das hostes da farmácia. Outra, dona Berenice, iniciou o curso mas logo desistiu, incapaz de distinguir entre file e chã-de-dentro.

Com dona Gertrudes Becker, esposa do doutor Frederico Becker, proprietário da rede de Drogarias Hamburgo – quatro na Cidade Alta, uma na Cidade Baixa, outra em Itapagipe – representante de grandes laboratórios estrangeiros e presidente mais ou menos perpétuo da Sociedade, rei da magnésia e da urotropina, dona Flor não trocou visitas. Só descia dona Gertrudes do seu trono uma vez por ano quando no baile de Dezembro concedia tocar com a ponta dos dedos as mãos daquela pequena burguesia aflita e sôfrega com a qual seu marido tinha identidade de negócios.

Quanto ao doutor Frederico, senão aos almoços com gasosa e vinho do Rio Grande, não faltava às reuniões da Sociedade, presidindo-as, dando a última palavra sobre qualquer assunto.

Era um alemão baixote, de olhos azuis e doces e áspero acento. Corriam lendas a respeito da sua fortuna e também de seu título de farmacêutico, fornecido por distante escola alemã quando ele já era dono de três farmácias.

Adorava crianças, parando na rua para lhes dar bombons dos quais trazia sempre bolsos cheios.

Mal completara dona Flor dois meses de casada quando subiu pela primeira vez as escadarias a conduzir às salas da Sociedade Bahiana de Farmácia, no segundo andar de um prédio colonial no Terreiro de Jesus. No andar de baixo funcionava o Centro Espírita Fé, Esperança e Caridade numa feroz concorrência aos farmacêuticos, pois médiuns e irmãos do astral obtinham curas radicais de todas às enfermidades à base de receitas metafísicas, prescindindo de mezinhas, drogas e injecções.

Ia dona Flor ter a oportunidade única de testemunhar o sensacional debate a ser travado naquela noite na reunião da Sociedade Bahiana de Farmácia, em torno do trabalho do doutor Djalma Noronha, tesoureiro do grémio: “Da crescente aplicação pela classe dos médicos de produtos manufacturados, com o consequente declínio do receituário manipulado, e das imprevisíveis consequências resultantes”.

Encontrava-se a classe dos boticários dividida entre aquela tendência da maioria da classe dos médicos, sendo uns entusiastas dos remédios fabricados e embalados nos laboratórios do Sul, partidários outros das mezinhas tradicionais pacientemente medidas nos fundos das farmácias, as fórmulas escritas e coladas aos vidros e caixas, garantindo o produto pelo farmacêutico com o aval da sua assinatura.

Durante a semana não tivera doutor Teodoro outro assunto, sendo ele próprio um dos campeões da escola tradicional. “De que valerá o farmacêutico quando só existirem produtos manufacturados? Não passará de mais um balconista, um mero caixeiro em sua farmácia”, iria declarar patético na reunião.

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