segunda-feira, agosto 23, 2010

DONA FLOR E

SEUS DOIS
MARIDOS


Episódio Nº 205


Descobriu dona Flor desconhecidos e insuspeitados mundos, pelo braço do seu marido neles penetrou, vindo a ser figura de realce, “gracioso ornamento”, como sobre ela escreveu, justo e gentil, dando conta da festa dos Taveiras Pires, o nosso exigente Silvinho, de indispensável citação.

Nunca lhe ocorrera existir um universo só de farmacêuticos, hermético e fascinante: com seus assuntos privativos, sua visão peculiar da vida, sua linguagem própria, sua atmosfera de nitratos e calomelanos. Universo cuja capital e cúpula era a Sociedade Bahiana de Farmácia, com sede própria, um andar inteiro, limitando com outros mundos, mais ou menos importantes como o dos médicos, casta suficiente e poderosa, beneficiária do trabalho dos demais.

Sim, de que valeriam os médicos – perguntavam os líderes da farmacologia – se não existissem os farmacêuticos? Por que então essa pose, essa arrogância?

Igualmente presunçosos, os representantes dos laboratórios; corteses e até humildes na hora de vender; desatentos com os pequenos, por vezes rudes na hora de cobrar uma promissória em atraso. Mais agradáveis com os caixeiros-viajantes, com as malas de remédios e as últimas anedotas. Toda essa gente, da universidade e do comércio, com seus títulos, seu dinheiro, sua pose, erguia-se sobre um vasto chão de oficiais e balconistas de farmácia, de míseros ordenados.

Ao passar em frente à Drogaria Científica, ao cruzar seu passeio, ao adquirir um tubo de pasta dentífrica ou um sabonete, jamais percebera antes dona Flor o forte hálito daquele mundo das drogas, sua respiração.

Mundo onde mourejava seu marido, apoiado no canudo de doutor (e mais ainda nos conhecimentos resultantes da longa prática nos laboratórios e balcões), em sua capacidade de trabalho e em sua honradez buscando assegurar-se uma situação financeira e certo renome científico. Situação modesta, modesto renome, suficientes no entanto para abrir a dona Flor as portas daquele mundo de iodos e sulfatos; para fazê-la beneficiária dos programas culturais e recreativos da Sociedade Bahiana de Farmácia: as assembleias na sede própria, com leitura e debate de teses e trabalhos sobre temas científicos ou profissionais; os almoços, em datas festivas – posse da nova directoria, o Dia do Farmacêutico – rega-bofes onde se reuniam directores e associados (com suas famílias) em ruidosa confraternização de classe como repetia infalível doutor Ferreira, em seu infalível discurso. Sem esquecer o baile do fim do ano, em Dezembro, antes do Natal.

Frequentou dona Flor, com certa assiduidade sem exagero, as teses e os repastos. Estabeleceu relações com esposas de colegas do marido, e algumas visitou e por elas foi visitada, rendendo-lhe essa troca amabilidades três ou quatro amigas e uma só aluna.

Dona Sebastiana, esposa e braço forte do doutor Sílvio Ferreira, secretário-geral da Sociedade e seu principal animador, mulherona alegre, tinha uma voz de trovoada e um riso contagiante. Dona Rita, senhora do doutor Tancredo Vinhas, da Farmácia Santa Rita, constituía com o marido um casal magro e agradável, ele a fumar cigarro sobre cigarro, ela com uma pequena tosse de tísica encruada. Dona Neusa, a loira Neusoca dos olhos gaios, era mulher de R. Macedo & Cia. A companhia formavam-na os caixeiros, sendo dona Neusa atirada a um caixeirinho novo. Deles fazia colecção e os rebatizava com nomes dos remédios mais em moda. Houve Elixir de Inhame, mulato grosso, Bromil parecia um menino de tão jovem e frágil, ainda imberbe e inocente, jóia preciosa da rara colecção. Lindo era Emulsão de Scott, labrego recém-chegado das terras da Galícia, com faces de maçã. Saúde da Mulher foi o pequeno Freasa, que fez companhia quando ela convalescera
de hepatite.

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