sábado, agosto 21, 2010


DONA
FLOR
E SEUS
DOIS
MARIDOS


Episódio Nº 204




- Mudar de casa? Eu? Quem lhe disse?

- Pois sua mãe, dona Rozilda. Me disse que você estava-se queixando, mal-satisfeita com a casa, num desgosto…

Dona Flor fitou o marido na borda da cama, muito sério, uma ponta de tristeza nos olhos. Deu-lhe vontade de rir: “tamanho homem e tão sem malícia”.

- Mamãe? E você pensou que eu tinha mandado? Você ainda não conhece mamãe, Teodoro. O que ela está querendo, eu sei… Para que haveria eu de querer casa maior? Quem quer é ela, com um quarto onde se instalar de vez para sempre, deus me livre e guarde.

- Mas sendo assim, querida, para hospedar sua mãe, a gente talvez possa…

Dona Flor susteve o riso, olhou para o marido bem nos olhos:

- A gente deve usar de franqueza um com o outro, você disse, Teodoro. Me diga, mas me diga de verdade, não minta; você gostaria da velha morando com a gente para sempre?

Não era doutor Teodoro homem de mentiras, tão pouco de ofender os demais, menos ainda a mãe de dona Flor:

- É sua mãe, é minha sogra, se ela quiser e você estiver de acordo…

- Pois fique sabendo, meu querido, que eu não quero nem estou de acordo. É minha mãe, gosto dela, mas aqui, vivendo com a gente, nem por todo o dinheiro do mundo. Não há quem ature a velha, Teodoro, você ainda não conhece ela direito.

Tomou a mão do esposo:

- Nesta casa, meu querido, só eu e você, mais ninguém. Daqui a gente só sai para casa própria. Aliás, o melhor, quando a gente puder, é comprar esta mesma…

Respirou aliviado o farmacêutico. Por dona Flor seria capaz de sacrifícios, até de aguentar dona Rozilda com seus mexericos. Mas, felizmente, tudo se esclarecera. Não mudara dona Flor, modesta nos desejos, parca nos gastos, sensata.

Quanto a dona Rozilda, evoluíra a opinião do doutor Teodoro, a santa velhinha dissolvia-se na peçonha. Não era sem razão que o concunhado, o tal Morais, mantinha-se no Rio, disposto a só voltar à Bahia só quando a sogra emborcasse. Outro cuja única esperança residia na morte, pois, para o caso de dona Rozilda, em sua opinião, não havia alternativa.

O doutor Teodoro, porém, menos experiente da sogra e muito mais gentil, de esmerada educação, disse numa última fineza:

- Coisas de velha, coitada… Na idade dela…

Dona Flor afagou a mão do marido, homem tão bom:

- Não é questão de idade meu querido… Ela sempre foi assim…

É minha mãe, não me cabe falar dela, uma filha não pode… Mas ela sempre teve esse génio, desde mocinha… Nem meu pai suportou e era um santo. Se ela se metesse aqui, Teodoro, a gente ia terminar brigando…

- Nós dois? Nunca, minha querida, jamais…

Olhou-a quase comovido, numa ternura:

- Nunca iremos brigar… Nem esconder nada um do outro, seja o que for. Contaremos tudo, tudo…

Beijou-a nos lábios, levemente.

- Tudo… - repetiu dona Flor num sussurro.

Doutor Teodoro sorriu de todo satisfeito, levantou-se, foi apagar a luz. “Tudo, Teodoro, Tu crês possível? Mesmo os pensamentos mais recônditos, mesmo aqueles que a pessoa esconde de si própria, Teodoro?”

Dona Flor via o torso forte do esposo sob o pijama, as largas omoplatas, o cangote rijo, os músculos do braço. Mordendo os lábios, tratou de desviar o pensamento, pois sendo segunda-feira não era dia dessas coisas. Sistemático, o doutor mantinha nisso e em tudo a mais perfeita ordem. Tão bom e generoso, tão delicado e atento, tão caído por ela a ponto de suportar dona Rozilda… Tamanha devoção compensava sua sistemática, seu rigor de horários, regras, etiquetas.

- “Tudo não, Teodoro, tu não sabes que obscuro poço é o coração da gente.”

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