quarta-feira, setembro 01, 2010


DONA
FLOR
E SEUS
DOIS
MARIDOS


Episódio Nº 213



Em fraterna intimidade, tratavam-se todos, inclusivé o Pobre Homem que ali era o Violino Genial, pelos prenomes e apelidos: Lalau, Pinhozinho, Azinhavre, Raul das Meninas, Cavalo Pampo, o mesmo se dando entre as senhoras ou quase o mesmo. Diziam-se Heleninha, Gildoca, Sussuca, Toquinha, chamavam dona Flor de minha santa, morena linda, belezoca, e lhe pediam conselhos culinários.

Não lhes cabia culpa se em algumas ocasiões dona Flor sobrava na conversa, sem assunto, desconhecendo certos temas gratos e constantes naquele meio. Afinal, ela não jogava bridge, não era sócia dos clubes nem presença obrigatória na sociedade. Nesses hiatos de silêncio, dona Flor procurava com os olhos o marido a soprar o seu fagote, a fisionomia plácida e feliz. Sorria então, pouco lhe importando a conversa das senhoras, sem que lhe pesasse o isolamento.

Ao lhe anunciar doutor Teodoro ter sido sua casa escolhida para o próximo ensaio, pôs-se dona Flor em brios: não ia ficar atrás de ninguém. Quando o marido se deu conta, já ela estava convidando Deus e o mundo, disposta, inclusivé, a gastar as suas economias num esparrame de comida e de bebida. Foi um custo contê-la. Queria mostrar àquelas ricaças que também em casa de pobre se sabe receber.

Tentou doutor Teodoro reduzir o rega-bofe: servisse no máximo uns doces e salgados, além de cerveja obrigatória. Se quisesse ser gentil e agradável ao maestro, preparasse um gostoso mungunzá, prato de especial predilecção de seu Agenor:

- Aliás ele merece… Tem uma surpresa para você… E que surpresa!

Ainda assim, apesar das advertências do marido, dona Flor serviu um lanche opíparo e superlotou a casa. A mesa era soberba: acarajás e abarás, moquecas de aratu em folhas de banana, cocadas, acaçás, pés-de-moleque, bolinhos de bacalhau, queijadinhas, quanta coisa mais, iguarias e pitéus, muitos e diversos. Além do caldeirão de mungunzá de milho branco, um espectáculo! Do bar de Mendez vieram os engradados de cerveja, as gasosas de limão e de morango, os guaranás.

Foi um sucesso o ensaio. Se bem só duas as esposas dos amadores tivessem aparecido, apenas dona Helena e dona Gilda, a casa se encheu de gente, os vizinhos num assanhamento, nervosas as alunas, as comadres em delírio (dona Dinorá quase morreu depois, de indigestão).

A orquestra foi instalada na sala de aulas, onde, além dos músicos, sentaram-se apenas algumas pessoas gradas: dom Clemente, dona Gisa, dona Norma, os argentinos (dona Nancy se vestiu de gala, numa elegância que só vendo), doutor Ives, muito palpiteiro, como sempre metido a entender de um tudo, cagando regras sobre música, citando óperas e Caruso, “aquilo sim que era voz!”.

Houve um instante de suspense: quando o maestro Agenor Gomes, de batuta em punho, disse ter algo a revelar, uma surpresa para a dona da casa, uma oferenda. Naquela tarde, pela primeira vez, iriam ensaiar composição de sua autoria, romanza inédita e recente, especialmente criada “em homenagem a dona Florípedes Paiva Madureira”. Um arrepio percorreu toda a assistência e o silêncio, até então bem pouco respeitoso, perturbado de risos e conversas, fez-se completo.

Sorriu o bom maestro: para ele, aqueles músicos amadores eram como o prolongamento de sua família, e com pavanas e gavotas, valsas e romanzas, comemorava os faustos de suas vidas, as grandes alegrias, as fundas tristezas. Se morria pai ou mãe de um deles, se lhes nasciam filhos, se alguém se alguém tomara esposa, com sucedera com o farmacêutico, desatava o maestro a inspiração
e para o amigo em riso ou choro compunha sua solidária página de música.

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