quinta-feira, setembro 23, 2010


DONA
FLOR
E SEUS
DOIS
MARIDOS

Episódio Nº 232



Não resistira durante a sessão inteira, nem mesmo quando o doutor Teodoro apresentara a sua controvertida tese sobre os barbitúricos; no entanto, aquela fora noite apaixonante, de violentos debates, estando em jogo a reputação científica do doutor. Também haviam entrado pela madrugada a discutir, e quando o esposo, fremente e feliz, lhe oferecera o braço, ela, que acordara com os aplausos, quase lhe pede desculpas por ter dormido a sono solto, como se houvesse ingerido doses cavalares de infusos e barbitúricos. Ainda disse:

- Meu querido…

Mas ele, de tão eufórico, nem reparava em seus olhos vermelhos, em sua face estremunhada.

- Obrigado, minha querida. Que grande vitória!

Arrasara, de uma vez para sempre, com os barbitúricos, cumprindo seu dever de cidadão e de farmacêutico. Na drogaria ele os vendia, a esses perigosos tóxicos, obtendo com eles, ao balcão, pingues lucros pois estavam no furor da moda.

Erudito e estudioso farmacêutico e, ao mesmo tempo proprietário de farmácia capaz e próspero, não se sentia o doutor incómodo ou dúplice com a contradição por acaso existente em sua conduta, pois observava com a mesma inflexível consciência a nobre moral de cientista e a não menos digna moral de traficante.

Acontecimento mesmo, a repercutir nas colunas dos jornais, a ser comentado em altas rodas, movimentando costureiras, lojas de modas, alfaiates cujo registro se torna aqui obrigatório, foi o concerto da Orquestra de Amadores Filhos do Orfeu no palacete em festa do comendador do Papa, virtuose de violoncelo.

Descrever aquela noite de arte em seu esplendor completo, parece-nos impossível tarefa, acima de nossas forças e deste pobre estilo. Se alguém quiser saber, por exemplo, dos trajes das senhoras, de sua beleza e de seu chique incomparáveis, nós o remetemos à colecção do jornal do poeta Tavares, onde pode ler a cobertura feita pelo sempre brilhante Silvinho Lamenha, árbitro nessa matéria delicada. Quanto ao concerto propriamente dito, os interessados têm as opiniões expressas na gazetas pelos críticos Finerkaes e José Pedreira além da crónica de Hélio Bastos, homem de sete instrumentos, pois além de pianista dava-se às letras e às belas-artes. Dona Rozilda coleccionou em Nazareth os recortes, quase todos eles referindo-se com louvores ao doutor Teodoro e “à sua primorosa execução no difícil solo de fagote na romanza de Agenor Gomes, um dos pontos altos do concerto”.

Naquela noite viu-se dona Flor nas culminâncias, no mais alto degrau da escala social, ascendera e fora notada: “gracioso ornamento, qual o costureiro parisiense a assinar o seu vestido de moiré fauve de decote drapeado, botando no chinelo muita gente boa?”, como redigiu Silvinho, o deus-menino da sociedade. Estava presente toda a nata social, a gente mais importante da Bahia, os personagens da política, do dinheiro, da intelectualidade, do Arcebispo Primaz ao Chefe da Polícia, e entre eles, esnobes e enfastiados, aqueles vigaristas que haviam aplicado com êxito o golpe do baú, a começar pelos genros do comendador.

Das imediações do Largo Dois de Julho, além do doutor Teodoro, apenas seu Zé Sampaio, colega de Cavalo Pampa no Clube dos Lojistas e seu antigo companheiro de colégio, recebera convite. Recusou-se a ir.

- Não! Pelo amor de Deus… Deixem-me em paz, ando ruim do baço, preciso de repouso… Vá você sozinha, Norma, se quiser…

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