sexta-feira, outubro 01, 2010

DONA
FLOR

E SEUS
DOIS
MARIDOS



Episódio Nº 239



A meio caminho, pelo corredor, dona Flor se deteve em frente ao extravagante grupo composto pela imagem barroca de Santa Clara e pela madeira antiga e popular onde fora esculpido aquele anjo de cinismo e de candura tão igual ao finado, com a mesma insolência e a mesma graça irresponsável.

Coitada da santa: sua santidade, por maior e mais defensa, por mais forte de virtude, não resistia ao olhar de frete do tinhoso, rendendo-se a ele a pobre bem aventurada, entregues seu decoro e sua vida, por ele pondo a perder sua salvação já conquistada, trocando pelo inferno o paraíso por que, sem ele, de que valem o paraíso e a vida?

Ali, diante do grupo insólito em madeira e frete, dona Flor ficou parada longo tempo, e a nave de pedra e cal, imenso barco, levantou âncora e partiu, singrando os ares num mar azul de nuvens, céu afora.


Esmerou-se dona Flor e a festinha foi das mais distintas, um sucesso completo a coroar o primeiro aniversário do feliz “conúbio de duas almas gémeas” com disse, com estilo e acerto, o doutor Sílvio Ferreira, secretário geral (reeleito) da Sociedade Bahiana de Farmácia, levantando sua taça num brinde aos esposos, “ao nosso prezadíssimo segundo tesoureiro e à sua digna consorte, dona Flor, exemplo de prendas e virtudes.

Dona Flor anunciara a dom Clemente a restrita presença de “alguns amigos próximos” mas, ao frequentar a porta, o padre deparou com a casa cheia e não apenas de vizinhos. O prestígio do doutor Teodoro e a simpatia de dona Flor haviam trazido àquele festejo íntimo um número considerável de pessoas: dirigentes da classe farmacêutica, colegas da orquestra de amadores, representantes comerciais, alunas e ex-alunas da escola Sabor e Arte, alem de velhos amigos, alguns importantes como dona Magá Paternostro, a ricaça e o doutor Luís Henrique, “o cabecinha de ouro”. Antes mesmo de cumprimentar o casal, dom Clemente abraçou esse “festejado beletrista”: sua História da Bahia vinha de obter um prémio do Instituto, “cobiçada láurea consagradora de um valor autêntico”.

Em matéria de cultura, além do discurso do doutor Ferreira, rico em tropos de retórica, houve um pouco de música. Doutor Venceslau Veiga executou duas árias ao violino, entre aplausos. Aplaudida também – e muito – a jovem cantora Marilda Ramosandrade, a “voz meiga dos trópicos” apesar de lhe faltar acompanhamento. Apenas Oswaldinho marcando o ritmo ao pandeiro.

Nessa improvisada hora de arte, doutor Teodoro fez um bonito, exibindo-se em número de verdadeira sensação: tocou ao fagote, todo o hino nacional, arrancando palmas no fim, entusiásticas.

Fora disso, comeram e beberam, rindo e conversando. Na sala de visitas plantaram-se os homens, na outra sala as mulheres, apesar dos protestos de dona Gisa para quem essa separação de sexo era um absurdo “feudal e maometano”. Apenas ela e mais duas ou três senhoras se arriscavam a participar da roda masculina onde corria a cerveja e sucediam-se as anedotas, sujeitas à censura de dona Dinorá, ainda alquebrada e dolorida mas impertérrita:

- Essa Maria Antónia é uma debochada… Fica metida no meio dos homens a ouvir patifarias… E ainda arrasta dona Alice e dona Misete… Quanto à gringa, essa é a pior de todas … Vejam como estende o pescoço para ouvir…

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