sábado, outubro 16, 2010


DONA FLOR E SEUS DOIS MARIDOS

Episódio Nº 245



1


Não tardaria o crupiê anunciar a última bola, eram a madrugada e o cansaço. Em desespero, Madame Claudette andou de jogador em jogador, estendendo a um e a outros, a mão de pedinte. Já não conseguia sequer dar à voz e aos olhos entoação de convite, toque de malícia, promessa de doce pagamento. Já não tinha nem um resquício de amor-próprio, apenas medo da fome. Já não dizia com seu puro acento parisiense: mon chéri, mon petit coco, mon chou, apenas suplicava, numa voz de dentes podres, uma ficha, ao menos uma das pequenas, de cinco mil-réis. Não para jogar, para remir, garantindo o de comer no outro dia.

Se a houvessem atendido quando penetrara, frustrando a vigilância do porteiro ou comovendo-o (havia ordens para barrar-lhe a entrada, então colocaria a ficha na roleta para multiplicá-la com certeza e obter o dinheiro para o aluguel vencido da pocilga no sobradão do Pelourinho onde habitava com ratos e baratas (umas baratas negras e cascudas: subiam-lhe pela cama, um nojo). Cada manhã era acordada com gritos e escarros, pelas ameaças de despejo imediato do Fedorento, proposto da senhora dona Imaculada Taveira Pires, proprietária daquele e de muitos outros cortiços, cuja renda total o comendador lhe destinara, para suas caridades.

O aluguel, quem sabe? talvez ainda conseguisse um prazo, um dia ou dois, se o Fedorento aparecesse disposto a “aliviar a matéria” como ele dizia, e ela lhe satisfizesse as necessidades. Preço terrível, no dizer dos que conheciam o Fedorento (mesmo conhecendo também madame Claudette e a sua extrema decadência; perto dele Madame era perfume e flor).

Próxima dos setenta – se lá não chegara ainda – quase calva, uns ralos cabelos, cacos de dentes, olhos de catarata, já não tinha ela como professar o honrado ofício no qual um dia fora excelsa majestade, quando os clientes faziam fila na sala da pensão de mulheres onde o exercitava com requinte.

Desembarcara em Salvador na força e no encanto dos quarenta anos, parecendo vinte e cinco, via Buenos Aires, Montevideu, São Paulo, Rio, “sensação de Paris” e do alto meretrício da Bahia, num tempo tão distante que dela Madame Claudette não guardava senão débil memória, não lhe servindo assim aquele fausto nem mesmo como fonte de alegria.

Foi descendo aos poucos, rua a rua, da Pensão Europa, na Praça do Teatro, supra-sumo do chique, onde os coronéis do cacau rasgavam notas de quinhentos e aprendiam, em curso em curso intenso, as finuras gálicas do prazer. Foi baixando de hierarquia e preço, até chegar, numa viagem de anos e anos, implacável, à última imundice no sopé das ladeiras, nas sarjetas do Julião e do Pilar, do Beco da Carne Podre. E, por fim, nem isso. Viveu, então nos quartos miseráveis sua amarga fome. Num trotoar escuso, oferecia-se por um níquel nas esquinas mais sombrias, “michê de Paris, mon coco”.

Certa ocasião um negro, no começo da cachaça lhe disse quase afectuosamente, dando-lhe um níquel.

- Vá criar seus netos, vovó, você não serve mais pra puta…

Não tinha netos, nem um só parente, nem um só amigo, ninguém, nada.

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