quarta-feira, novembro 10, 2010


DONA
FLOR
E SEUS
DOIS
MARIDOS

Episódio Nº 266


Mal tivera tempo o testa-de-ferro de dar-se conta do fenómeno e da sóbria compostura de Lulu e lá se ia a banca de cem contos pelo ar, nos dedos de Arigof.

António Dedinho, enxugando o suor na testa exangue, olhou o trio em sua frente. Tinha filhos para criar e para outro emprego não servia, aí, meu Deus! Os três o fitavam de través, o professor Máximo ciciou: “prossiga”. Com sua roupa azul, seus óculos sem aro, seu anel de rubi, máximo Sales parecia um respeitável catedrático de carapinha embranquecida no estudo e nas vigílias científicas.

Tão formal e digno que todos o tratavam de professor, inclusivé Pelancchi, se bem só fosse formado em contravenção, em fichas e baralhos. Nessa cátedra era realmente sumidade, competência total, notório saber, doctor angélicus.

António Dedinho, vítima do destino, preparou novo cahier e tudo se repetiu como um pesadelo. Como disse Amesina (seu lindo nome era formado com Ame de Américo, seu pai, e com Sina de Rosina, sua mãe), meretriz dada à leitura do Almanaque do Pensamento e de outras fontes exotéricas, tratava-se do “esperado sinal do fim do mundo”. Máximo Sales fez algumas perguntas a Cachorrão e a Lulu (de quem inspirou o inocente hálito) e, largando aquele dilúvio de damas, dirigiu-se ao telefone.

Eis por que Pelancchi Moulas surgiu na sala, com Zulmira a tiracolo. Abriram alas para ele passar e assim ver bem de perto seu dinheiro diluir-se ao lasquinê. A banca de cem contos estourou em sua cara.

Com um gesto de rei, Pelancchi Moulas afastou António Dedinho e na vista de todos os presentes fez uma vistoria no cahier: os doze reis se acumulavam no fundo da caixa, eram as últimas cartas. Os três empregados: Máximo, com sua pose doutoral, o rafeiro Gilberto e Lulu, fiscal da sala – trocaram um olhar sabido. António Dedinho viu-se inocente e condenado. Pelancchi Moulas, os olhos frios, azuis de crueldade, fitou primeiro o crupiê e os três funcionários, depois a multidão em torno, faces ávidas e tensas, jogadores no limite finais do absurdo. À frente de todos, o negro Arigof: montanha do Himalaia, altura imensa, eixo do mundo, no dizer entendido de Teresa, geógrafa e negreira. Arigof sorria coberto de suor e fichas.

Sorriu também Pelancchi Moulas para Zulmira, à sua retaguarda, preparou ele próprio um novo cahier e fez o anúncio da banca como se declamasse um verso:

- Banca de duzentos contos.

Nem por ser ele Pelancchi Moulas, senhor do jogo, de baraço e cutelo, majestade e tudo mais quanto se sabe e não vale a pena repetir, nem por isso mudou a sorte, que já não era sorte mas sim prodígio. Lá vinham rei e dama e dava a dama de primeira carta. Quando a banca estourou antes do cahier chegar ao meio, Pelancchi Moulas examinou a caixa com o resto dos baralhos: lá no fim (o fim do mundo… repetia Amesina, a profetisa) estavam juntos os doze reis inúteis.

Largando as cartas, Pelancchi Moulas sussurrou algo e Gilberto Cachorrão traduziu em voz alta:

- Por hoje o jogo se suspende…

Arigof retirava-se por entre manifestações de simpatia, seguido por admiradores e damas ardentes e enxeridas. Remiu as fichas, comprou champanhe, rumando para casa de Teresa, branca arretada por negro, uma capacidade em Geografia e jogos de cama. O negro foi-se cheio de empáfia: com ele não podiam nem a urucubaca nem o feitiço, nem a
cólera de iaba muçurumim.

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