segunda-feira, novembro 15, 2010

DONA FLOR

E SEUS DOIS

MARIDOS

Episódio Nº 270


Que mal há nisso, meu bem? Que é que tem? Deixa minha mão ficar aí, não estou te tirando pedaço, nem te alisando, estou com a mão parada, o que é que tem? – mantinha a mão discreta sobre as alturas dos quadris redondos, mas apenas obtida a muda aquiescência, a mão não se continha, indo e vindo das ancas para as coxas – vasto território pouco a pouco conquistado.

Assim, com as mãos, o hálito, os lábios, as palavras macias, com o olhar, o riso, a invenção, a graça, com o queixume, a briga, o dengue, Vadinho cercava a fortaleza, dita irredutível por dona Flor, pondo abaixo muralhas de dignidade e pudicícia. Num avanço constante e firme, em obstinado assédio, reduzira hora a hora o campo de batalha.

A cada encontro ocupava nova posição, caíam bastiões, rendidos pela força ou pela astúcia: a mão sabida ou bem o lábio de promessas mil, todas elas vãs – “só um beijo, meu bem, só um”… Lá se foram os seios, as coxas, o colo, as ancas, a bunda de cetim. Agora tudo isso era dele, terreno livre de censuras para a mão, para o lábio, para a carícia de Vadinho. Quando dona Flor se deu conta, sua honestidade e a honra do doutor viam-se encurraladas em derradeiro reduto, quanto lhe restava ainda incólume. O mais, esse chão ardente de batalha, ele o tomara sem ela quase o perceber.

Dona Flor vinha disposta a reclamar as manchas roxas do pescoço, sinais devassos, estarrecedores, vinha disposta a proibir quaisquer intimidades, mas ele a envolvia num abraço, sussurrando explicações ou fazendo burla de seu pudor e de sua seriedade, e dentro em pouco lhe mordiscava a orelha, num afago de arrepios.

Fazia-se urgente e imprescindível pôr cobro, de uma vez para sempre, àquelas relações equívocas já tão distantes da terna estima, da inocente amizade amorosa, do platónico sentimento que dona Flor imaginara possível quando do regresso de Vadinho. Ao medir a extensão do perigo, a esposa virtuosa encheu-se de medo e brio, dispondo-se a pôr um paradeiro naquela situação absurda. Onde já se viu mulher com dois maridos?

Sentada no sofá, reflectia dona Flor sobre a delicadeza do assunto – devia conduzir a discussão com muita habilidade para não magoar Vadinho, para não o ofender; afinal ele viera em atenção ao seu chamado – quando o tinhoso surgiu e a tomou nos braços. Enquanto dona Flor buscava maneira de iniciar a conversa, Vadinho enfiou-lhe a mão por debaixo dos vestidos, tentando atingir exactamente aquele último reduto ainda incólume, cofre-forte a conter sua dignidade de mulher e a honra do doutor.

- Vadinho!

- Deixa eu ver a peladinha, meu bem… Estou morto de saudades da bichinha… E ela de mim…

Levantou-se dona Flor numa explosão de cólera, em violência e fúria. Também Vadinho se aborreceu e foi áspero e desagradável o bate-boca. Talvez Vadinho não mais esperasse tão brusca reacção de dona Flor, pensando-a já de todo conquistada.

- Tira a mão de cima de mim, não me toque mais… Se ainda quiser me ver e conversar comigo, tem que ser de longe, como conhecidos e nada mais… já te avisei que sou mulher honesta e que estou muito feliz com o meu marido…

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