terça-feira, novembro 23, 2010


DONA
FLOR
E SEUS
DOIS
MARIDOS

Episódio Nº 276


Bancava em nome da casa, o melhor banqueiro de bacará da cidade, quiçá do norte do Brasil, Domingos Propalato. Não um empregado qualquer mas o patrício, o compadre, o irmão de leite de Pelancchi Moulas. Nascidos na mesma aldeia, com a diferença de dias, a mãe de Domingos em seu farto seio amamentara o futuro milionário. Capaz de matar e morrer pelo fraterno, estava Propalato acima de qualquer suspeita. Em frente a ele, o velho Anacreon. Mais que suspeito.

Onde arranjara o palpite e o dinheiro para o jogo? Todos sabiam da mísera situação a que descera o velho: tão por baixo reduzido a vender pule de bicho no café do Raimundo Pita Lima.

Ao demais - somava Máximo nos dedos – o velho tinha audácia e experiência. Muito antes de Pelancchi Moulas estabelecer seu império na Baía já Anacreon era figura popular nas rodas do jogo clandestino, perseguido e roubadíssimo. Hábil no traço do baralho, na queda dos dados, quem mais antigo e constante da mesa da roleta, em frente ao bacará, na batida da ronda, do vinte e um, do sete-e-meio? Um patriarca.

Passavam-se os anos, surgiam e desapareciam gerações, só o velho Anacreon se mantinha igual, com altos e baixos certamente, fases boas e ruins, sem jamais no entanto ter exercido outro ofício além do jogo.

Rapazes que se fizeram à sua sombra já não jogavam, transformados em pessoas sérias e respeitáveis, como Zéquito Mirabeau, Edgard Curvelo, e até Giovanni Guimarães. Um dos seus primeiros camaradas, Bittencourt, rápido chegara a director do serviço de Águas, engenheiro competente. Não esqueceu o amigo, lhe propôs um emprego de contínuo, garantia para os dias da velhice. Comovido, Anacreon chorou abraçado a Bittencourt mas nunca foi assinar o contrato e tomar posse.

- Só sirvo para jogar, pra nada mais…

Alguns, (uns poucos, felizmente) ocupando cargos importantes ou casados com mulheres ricas, não ousavam sequer recordar aqueles tempos da juventude e boémia. Outros tinham morrido em plena mocidade e Anacreon vivia a lhes recordar os nomes e os feitos: o alegre Ju, príncipe da facécia, do gracejo, da pilhéria fina; o belo Divaldo Miranda, rico e elegante cabo-verdeano; o gordo Rossi, uma simpatia de rapaz, doido por samba e por cachaça: certa vez, bêbado, urinara em pleno salão do Palace, na vista das senhoras, e só não foi linchado por Anacreon, puxando de uma navalha, virou fera e lhe garantiu a retirada: Vadinho, o inesquecível, o seu amigo mais dilecto, o mais louco e divertido, o melhor, o mais retado, um porreta.

Porreta, sim, o mais porreta! Mesmo morto e enterrado há uns bons três anos, não suportava ver o velho Anacreon anotando pule de bicho nos fundos do café, num miseré daqueles, a moral na lama. Aparecendo-lhe em sonho – sonho que mais parecia realidade, pois Anacreon nem sequer dormira, um cochilo quando muito depois do magro almoço – Vadinho lhe aconselhou fosse sem falta ao Tabaris naquele mesmo dia e no seguinte, e na mesa de Domingos Propalato apostasse no ponto e só no ponto, a noite toda. Sempre no ponto, jamais na banca. Como arranjar dinheiro? Tomando algum de empréstimo a Raimundo, à sua revelia; bom sujeito, o dono do café não ia fazer caso de alguns mil-réis. Ao demais, na manhã seguinte, Anacreon coberto de ouro, novamente freguês do bicho e não empregado de bicheiro, reporia com juros os níqueis do empréstimo nas apostas do café do Raimundo.

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