sexta-feira, dezembro 10, 2010

DONA

FLOR
E SEUS
DOIS
MARIDOS


Episódio Nº 290


O Recado de Pelancchi Moulas alcançou o místico Cardoso e S.ª na Igreja do Passo, de visita a seu túmulo como o fazia a cada aniversário de sua morte.

Daquela sua morte, quando se chamara Joaquim Pereira, potentado baiano falecido em seu solar do Corredor da Vitória, nos idos de 1886. Velório de estrondo, enterro com grande acompanhamento de irmãos maçons e de colegas do comércio atacadista, com o Governador da Província e carpideiras, com missa de corpo presente.

Multiplicavam-se os túmulos de Cardoso e S.ª pelo mundo afora. Múmia descoberta na Grande Pirâmide, peça de museu, soterrado nas neves eternas dos Alpes, quando os cruzou na vanguarda dos exército de Aníbal, e nas areias do deserto árabe, Zalomar em seu cavalo zaino. Morreu na França pelo menos duas vezes, outras tantas na Itália, e a Inquisição entre torturas o matou na Espanha, por alquimista e herético; rico e pobre, mendigo e cardeal, vendeu tâmaras no Egipto, na porta do Mercado, nas margens do Nilo, ao tempo de Ramsés II; contemplou as estrelas do hemisfério oriental, hebreu de barbas de algodão, o célebre sábio matemático Allhy Fouché, nascido e morto antes de Cristo.

Na Bahia, além do jazigo perpétuo na igreja negra do Passo, ele repousava também na igreja do Baiacu, na Ilha de Itaparica, onde foi morto na guerra contra os holandeses, aos trinta e três anos de idade, em 1638, quando na pele do belo, forte e libertino servidor do Rei de Portugal, Francisco Nunes Marinho d’Eça, 1º Capitão – Mor da Costa, perito em índias.

Toda essa imensa experiência – e muito mais, pois vários tomos se fariam necessários para contar a multiplicidade de sua vida ou de suas vidas, todas elas plenas de feitos e amores – se acumulava agora no frágil arcabouço de António Melchíades Cardoso e Silva (Cardoso e S.ª para os eleitos), modesto funcionário dos Arquivos Municipais, mestre de ciências ocultas, herdeiro da Chave de Salomão, filósofo universal e hindustânico e capitão do cosmos.

Vamos, seu Cardoso, que o patrão me disse que levasse o senhor de qualquer jeito. O homem está uma pilha… - disse Aurélio, chofer de Pelancchi.

- Vamos eu só estava lhe esperando…

- O senhor sabia que eu vinha?

O sábio riu da pergunta, gargalhada clara e solta, não existia ninguém mais alegre e satisfeito, tão plenamente feliz:

- O que é que eu não sei, Aurélio? Sei do negativo e do adjunto.

Quanto a Aurélio, não pensava discutir nem do negativo nem do adjunto, a simples presença de Cardoso já o punha nervoso. No carro, ao lado do chofer, o capitão do cosmo ia saudando invisíveis.

- Boa-tarde, brigadeiro…

Cadé o brigadeiro? Ali, sentado em frente ao mar, na fresca da tarde. Onde, seu Cardoso? Aurélio não consegue ver nenhum senhor, com farda ou de simples jaquetão. Nem a todos é dado ver, meu caro, só a alguns.

- Meus respeitos, minha senhora, beijo-lhe os pés.

Tampouco a vês? Toda elegante, chapéu de plumas e vestido de cauda, foi a mais bela do seu tempo, noutro tempo. Por ela dois rapazes se mataram na flor da idade. Agora pela orla marítima vão os três de braço-dado em galanteio e riso. Teus olhos estão cegos, míseros olhos de matéria, pois nem a ela enxergas, no esplendor de sua realeza.

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