sábado, dezembro 11, 2010

DONA
FLOR
E SEUS
DOIS
MARIDOS

Episódio Nº 291

- Deus me livre e guarde, seu Cardoso…

Ri o mestre sua gargalhada, a rua se povoa de espectros, o chofer tenso ao volante, não lhe agrada conduzir tanto mistério.

- Então as coisas não correm bem no jogo? – perguntou Cardoso, de repente.

- O senhor sabia? Será que ele sabe mesmo tudo?

Mas eis que Cardoso oculta o rosto e se esconde. De quem? Da moça loura e desportiva a caminho da praia? Dela mesmo, meu caro; sabes quem ela é? É Joana d’Arc, e sabes quem é Cardoso e S.ª? Pois não é outro senão o cardeal francês Pierre Couchon, legado do Papa, cuja mão medrosa assinou a sentença de morte da Donzela. Por toda a parte ele a vê, seus olhos inocentes, seu loiro perfil de sacrifício.

- Eu era dúbio, frívolo, imoral, covarde…

No apartamento de Zulmira, Pelancchi espera impaciente o mago do Hindustão, o único capaz de somar as parcelas do impossível.

- Demorou, seu Cardoso…

- Nunca chego nem antes nem depois, sempre na hora exacta.

Saudou Zulmira envolta em gazes esvoaçantes, bem a conhece Cardoso e S.ª de outras épocas, quando à frente das amazonas ela cruzava ela cruzava o vale na montaria árdega, o único seio à mostra, farto. Farto ainda o conserva (ao único e também ao outro, não porém à mostra, uma lástima – pensa mestre Cardoso, quase puro espírito decantado em tantas encarnações, não ainda, porém, tão completamente a ponto de não ser sensível a certas excelências dessa porca vida material onde se cumpre pena.

- Há dois dias lhe procuro…

- De que tem necessidade? De pressa ou de solução?

Os olhos parados, fixos no além, o suor na testa ampla, os fluidos em derredor. Concentração intensa:

- Deu o revertério na roleta, não foi?

Pelancchi volta-se para Zulmira, como a dizer-lhe: “Vês, ele adivinha tudo”.

Mesmo à tenda espiritual onde Cardoso habita com sua pobreza e cinco filhos (jamais cobrou um real para fazer o bem), chegam os rumores da cidade e, naqueles dias, de outros assuntos não se conversou na cidade além dos acontecidos no Palace, no Tabaris, no Abaixadinho, na mesas da roleta e do bacará, de lasquinê. Mistério ou batota, milagre ou trapaça, nunca se tivera notícia de azar tão grande quanto a Pelancchi Moulas. Chegaram tais comentários aos ouvidos do mestre, é verdade. Mas se não os tivesse escutado, isso por acaso o impediria de saber? Quando necessitou Cardoso e S.ª de ouvir para saber?

- Hoje de manhã, quando conversei comigo mesmo, antes de sair de casa eu me disse: Pelancchi vai mandar-me chamar, está nas trevas precisando um pouco de luz.

- De um pouco? Não, de muita luz… Estão querendo acabar comigo, Cardosinho, me liquidar de uma vez…

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