quarta-feira, dezembro 15, 2010

DONA
FLOR
E SEUS
DOIS
MARIDOS

Episódio Nº 294


As portas do inferno se abriram e o anjo revel transpôs a entrada do quarto de dormir (e amar) de dona Flor, aceso o olhar em frete, a boca num convite e todo inteiro nu. Se nem uma santa resistiu a esse olhar, ao apelo desse riso, a esse peito aberto, como poderá fazê-lo dona Flor? Onde estás, comadre Dionísia com teu colar de Oxóssi e com o ebó composto pelo ojé? Depressa, Dionísia, com o babalaô e com o mokan para amarrar o tinhoso na noite de seu sono eterno. Se ele continua vivo, dona Flor não pode responder por sua honra e pela testa do doutor. Toda uma vida honesta, o exemplar comportamento, a decência, a respeitabilidade, e eis que esse invejável capital corre perigo: amanhã o bom-nome de dona Flor, símbolo de virtudes, vai estar na boca do mundo, na lama, no desprezo. Amanhã outra mulher, apontada a dedo, coberta de remorso e de vergonha.

Dona Flor recolhe o olhar de frete no centro do seu ser, fretada; em gozo, responde a seu convite, oferecida.

Ao mesmo tempo é dona Flor alerta e valorosa ante o perigo, honrada e austera, intransigente, e é dona Flor com a maior pressa de se dar.

Qual das duas a verdadeira dona Flor? A que fecha a porta com estrondo, ou a que abre em silêncio, fresta a fresta, a porta de seu corpo? A chuva no telhado.

Noite de sábado após a tarde de enxaqueca, a vertigem, a visita de Dionísia, o concerto de fagote: tudo isso parece tão distante! O tempo de dona Flor é um tempo de batalha, já não se mede por horas e minutos, um tempo de recusa e de desejo, longo e sofrido. Noite de sábado, noite de doutor com bis: no banheiro ele se prepara para a discreta e deleitável festa dos sentidos. Em repouso dona Flor o aguardava, esposa submissa e grata. Mas, ah!, o astuto se acomoda aos pés da cama e lhe ordena, dedo em riste:

- Tu hoje não vai dormir com esse bosta, que eu não deixo. Nem que eu tenha de fazer um esporto de lascar.

Era um absurdo, um abuso, um despropósito, mas – entenda quem quiser o coração humano… - dona Flor sentiu-se satisfeita a ponto de rir e de lhe perguntar ( em vez de expulsá-lo ofendida e indignada):

- Está com ciúme dele, hein? O degas, com ciúme…

- Tenho é vontade de você, meu bem – respondeu todo na maciota, estendendo-se na cama a la godaça – já esperei demais… Onde já se viu eu ter de conquistar minha legítima com quem dormi durante sete anos? Se acabou, não espero mais. Como hei-de ter ciúme desse teu doutor de droga, se não tenho com ele briga ou competência? Casou contigo, é teu marido e, tirante a vadiação onde não dá no couro, no mais até é um bom marido, reconheço. Não lhe tiro seu direito. Só hoje, ele me desculpe: vai ficar no alvéu, quem vai vadiar é o porreta aqui, que entende do riscado e é bom no balancé e na estrovenga.

- Vá esperando, tem muito que esperar…

Todo inteiro nu, a boca ardida, o olhar de frete e a mão a subir por seus caminhos, ele a domina: dona Flor, escrava de Vadinho, livre só em palavras, pura pabulagem. Não fora sempre assim? Seu orgulho e sua pudicícia sumiam nas mãos dele, dona Flor obediente às suas ordens de marido e dono. Orgulho e pudicícia, decência, moral, dignidade, de que vale tudo isso, se ele a deseja e por ela veio (bem sabeis de onde, de onde não se vem).

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