terça-feira, dezembro 21, 2010

DONA
FLOR
E SEUS
DOIS
MARIDOS

Episódio Nº 299




De pé atrás, apenas ouvia falar em artista, em palco, em rádio. Quanto aos directores, cantores, músicos, eram todos uns pulhas, uns gaviões de olho nas infelizes, as garras afiadas.

Ainda há pouco uma jovem cantora, moça de excelente família – das relações de dona Enaide, “pessoas distintíssimas” – fora internada às pressas num hospital, a esvair-se em sangue, e, quando o médico foi ver a causa da hemorragia, constatou aborto e muito do mal feito por uma curiosa do canto de rua.

A moça só não morreu por ter sido entregue aos cuidados do doutor Zézito Magalhães, cuja competência todos conhecem. Não morreu, o médico lhe restituiu a vida, mas os três vinténs comidos, isso nem o bom doutor Zézito Magalhães, com toda a sua competência, pode lhe dar de novo. Nem ele nem ninguém, pois, como disse dona Dinorá, “ainda não se inventou virgindade de reposto”.

- Em compensação – considerou dona Norma – quem inventar vai enriquecer. Já pensaram? É só chegar na farmácia, na Científica, para não ir mais longe, e pedir: “Doutor Teodoro, me dê aí duas xoxotas novas, uma para mim, outra para a minha irmã… E uma mais barata pata a empregada lá de casa…”

Riram todas se bem nada daquilo tivesse a ver com Marilda, moça direita, na opinião geral da vizinhança. Por isso mesmo não podia ela vacilar entre o casamento com o fazendeiro e os magros pró-labores da rádio.

Grande foi o assombro por consequência, quando, naquele Domingo, dona Flor, ao ser solicitada mais uma vez por Marilda, aconselhou-a a mandar o noivo retrógrado e prepotente lamber sabão, mantendo-se na rádio onde não tardariam a lhe oferecer melhor salário. Dona Maria do Carmo, vendo a filha, forte daquele inesperado apoio, inclinada a romper o namoro, veio tomar satisfações quase briga com dona Flor:

- Se fosse sua filha, duvido… Nem parece nossa amiga…

A discussão pegou fogo, envolvendo a vizinhança, mas dona Flor manteve seus pontos de vista:

- Isso é puro carrancismo…

Terminou o bate-boca em choradeira, a própria Maria do Carmo vacilante entre o sucesso da filha e a segurança do casamento. Dona Flor conquistara a opinião da maioria. Dona Norma resumiu:

- Também vá ser monarco assim no inferno. O tempo da escravidão já se acabou.

Foi dona Flor para a cozinha preparar o almoço – nos Domingos de plantão não ia para casa dos tios no Rio Vermelho – e ali Dionísia de Oxóssi a encontrou:

- Licença, minha comadre…

Vinha buscar dinheiro e trazia pressa, pois o ebó estava em curso e a roda dos iawôs à sua espera para dançar à tarde e pela noite adentro. Antes, havia muito o que fazer, a obrigação era dos maiores, e complicada de preceitos. O babalaô jogara os búzios e os orixás tinham respondido. Para lhe garantir tranquilidade, livrá-la de olho-mau, de qualquer doença, das ameaças do egun inconformado a atraí-la para sua morte, dona Flor devia cumprir obrigação de monta, não um despacho simples, não um ebó qualquer.

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