sexta-feira, dezembro 31, 2010


DONA
FLOR
E SEUS
DOIS
MARIDOS

Episódio Nº 308


Foi-lhe então mostrado o amplo local, e ele demorou-se (a pressa é inimiga da ciência) a estudá-lo: a cor, a solidez, a arquitectura, tudo em verdade de primeira. Zulmira ia deixando, risonha e encabulada: não era Cardosinho quase um puro espírito, liberto da vileza da matéria? Quase.

- Igual às montanhas de Marte, na conformação e nos abismos – revelou o geógrafo dos planetas.

Tendo saciado (em parte) a curiosidade por aquele território, e sabedor de detalhes referentes aos seios, pediu-lhe para ver tais maravilhas, as vertentes e os cumes, invocando para tanto razões estéticas, além das científicas. Habituada por Pelancchi ao culto do belo e da poesia, como recusar-se a súplica tão pertinaz quanto cortês, despida de qualquer resquício de safadeza, provinda de pessoa tão correcta? – perguntou-se Zulmira e consentiu.

Mestre Cardoso e Sª., respeitoso artista falara apenas em contemplar por um instante aquelas “obras-mestras do Supremo Artífice do Universo” mas, ao vê-las soltas, foi tão grande seu deleite estético que perdeu a cabeça de vez e por completo. Se ele, quase puro espírito imaterial, se entregou às intemperanças da matéria, como exigir de Zulmira frágil mortal, mais rígida conduta? Assim, nesse pedir e dar-se, sucedeu.

Ao demais, fosse Pelancchi Moulas realmente generoso, quisesse premiar como devido o esforço descomunal do astrólogo e alquimista a seu serviço, e daria Zulmira de presente a Cardoso e Sª., desobrigada de qualquer encargo ou compromisso para com o jogo e seu senhor, fosse de dactilografia ou de recreação, reservando-se Pelancchi apenas o grato prazer de assegurar as despesas (altas) da opulenta. Porque o Grande Capitão, cumprindo sua palavra, resolvera o problema do jogo, salvara a fortuna do calabrês, libertando-o do azar e daquela confusão de marcianos.

Uma coisa é certa e indiscutível, ao menos: naqueles dias aconteceu a deserção de Giovanni Guimarães, o último a se retirar.

O primeiro foi Anacreon. O velho patriarca, educador de gerações, homem de respeito e cãs, certa noite dirigiu seus passos para o covil de Paranaguá Ventura, e naquele centro de batota onde cada carta era marcada, de novo se sentiu um jogador. Porque o ganhar sem fim não era jogo, não era uma disputa entre ele e a sorte, uma batalha contra o banqueiro e a bola da roleta, contra a carta e o dado. Tomava da ficha, punha na carta, no número, recolhia o ganho. Que gosto tinha aquilo, mágica mais sem graça? Que fizera ele, Anacreon, o perfeito jogador, o pedagogo da roleta, para merecer o castigo dessa sorte irreversível?

Isso era ganhar, não era jogo. A emoção do jogo é o não saber, é o risco, a raiva de perder, a alegria de acertar, o ganho e a perda. É seguir a bola na bacia da roleta em seu giro louco e em seu imprevisível número de sorte, cada vez um número diferente. Quando repetia, por acaso, que emoção! Agora Anacreon nem olhava para a bola, ela ia obediente cair no número onde ele a depositara as fichas. E as cartas dos baralhos? E os dados? Que crime cometera para merecer castigo assim?

O velho Anacreon era feito de uma peça só, de honestidade e de decência, um jogador com o prazer do jogo, o prazer de não saber, de arriscar. Agora não corria risco, sabendo mesmo antes do começo. Uma vergonha.

Arrebanhou os cobres fáceis e lá se foi ao encontro de Paranaguá Ventura:

- Isso aqui – disse-lhe o negro – não é o casino do Pelancchi, não me venha com farromba.

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