segunda-feira, fevereiro 14, 2011

TEREZA

BATISTA

CANSADA

DE

GUERRA

Episódio Nº 30

Joana concordou, convencida. Nesse caso o dinheiro guardado para pagar a dívida servirá para os honorários de Lulu: se bem nunca consiga, doutor, lhe pagar a caridade de ter aceite o caso sem esperar qualquer recompensa. Nem isso, minha cara, as custas e os honorários serão por conta do gatuno se a sentença for justa, como deve ser.

No fundo, não desagradava a Joana a ideia de dar uma lição ao falsário: possuía a malícia da gente do campo, uma esperteza natural a lhe fazer relativamente fácil o aprendizado do alfabeto, das sílabas, da leitura.

As mãos, porém, não tinham a agilidade da cabeça, capaz de perceber subtilezas e ardis. As mãos de Joana eram dois calos, dois montes de terra seca, raízes de árvores os dedos, galhos disformes, mãos acostumadas ao manejo da pá, da picareta, da enxada, do facão, do machado – como manejar lápis, caneta e pena?

Rompeu mil pontas de lápis, esgarranchou quantidade de penas, estragou toneladas de papel, mas nessa maratona contra o tempo e as mãos inábeis, Tereza foi de exemplar paciência e Joana, convencida pelos argumentos de lulu Santos, decidira ganhar vontade de ferro. Começou Tereza por cobrir com a mão tratada a mão torpe de Joana para lhe transmitir leveza e encaminhá-la.

Na chácara até às três da tarde, labutando com as mãos de Joana, parando apenas para rápido almoço. Trabalho cansativo, labor apaixonante: constatar cada mínima evidência de progresso, conter o desânimo a todo o momento, reerguendo-se dos fracassos, vitoriosa sobre a estafa e a tentação de desistir.

E Joana? Tão imenso esforço! Por vezes gritava o nome de Manuel, pedindo socorro, por vezes mordia as mãos como para castigá-las, e os olhos se lhe encheram de lágrimas quando finalmente traçou um jota legível.

Na marinete das três Tereza ia para o dentista, logo depois para o ensaio no Paris Alegre, onde Januário a encontra no fim de uma jornada para ele também trabalhosa: ajudando na carga, na limpeza, na pintura, no velame, no preparo da barcaça Ventania para a partida. Fora colocado a par do enredo, da fraude e da contra fraude – não há coisa melhor do que se enganar um sabido, dissera – nenhum outro estava no segredo.

Nem sequer Flori, a dar pressa ao dentista, vendo na poeira do chão os projectos de cama e mesa com a estrela candente do samba: o barcaceiro tomara a praça de assalto, Tereza derretida, a rir pelos cantos. Mas, conforme já se explicou antes, Pachola, homem com experiência do mundo e das mulheres, não desanima facilmente – mais dia, menos dia, completada a carga dos sacos de açúcar, suspendidas as velas nos mastros, abertas ao vento, a âncora levantada, a barcaça Ventania, casco ligeiro e bom de mar, desatracando da ponte tomará o rumo da Bahia.
No piano, marcando a cadência do samba, Flori olha sem mágoa o gigante no alto da escada: vá esquentando a cama para nela eu me deitar, não há cama de tanta fúria como a de mulher com dor de corno
.

Site Meter