domingo, julho 31, 2011

HOJE É


DOMINGO
(Da Minha Cidade de Santarém)




Comprometi-me convosco, no passado Domingo, a contar-vos uma história do meu passado de guerra ocorrida em Novembro de 1963, no coração dos Dembos, bem no centro do norte de Angola. Seria a minha última operação em teatro de guerra após a qual regressaria a Luanda e seguiria para outro local em paz, consumindo tempo, aguardando que chegasse ao fim a minha comissão para voltar então à minha família, aos meus amigos, à minha terra.

Afinal, o que então não sabia, é que esse tempo que me faltava cumprir seriam os 15 meses mais felizes e despreocupados da minha vida, mas isso eu o devo ao continente africano, àquela natureza, àquelas paisagens que nos aproximam das nossas origens como espécie, dos primórdios da nossa existência e, também, às gentes que ali viviam, as pessoas do povo Luena, no Alto-Zambeze, nas chamadas “terras do fim-do-mundo…”

A operação desenrolou-se tendo como base e ponto de partida uma fazenda de café, Maria Fernanda de seu nome, e nela participaram tropa sedeada na própria fazenda e outras, como o meu Grupo de Combate, vindos de Luanda de propósito.

A saída era em simultâneo, de madrugada, os itinerários diferentes para cada Grupo e o objectivo era de “limpeza” da zona, coisa perfeitamente delirante tendo em conta a dimensão da área, a riqueza da vegetação e o desconhecimento e pouco à vontade que possuíamos quando comparados com o das populações que faziam da floresta a sua casa.

Fomos largados de viaturas naquilo a que eles chamavam “picada”, trilhos de estradas de “terra batida”que já tinham deixado de o ser porque quando não utilizadas rapidamente são invadidos pelo capim e restante vegetação que literalmente se apodera delas em pouco tempo.

Deveríamos caminhar para Norte até encontrar uma outra picada na perpendicular do sentido que levávamos e onde as viaturas nos aguardariam para nos reconduzirem à fazenda Maria Fernanda.

Com o meu Grupo ia um outro que pertencia à guarnição militar da própria fazenda e que era comandado por um Alferes licenciado em medicina mas que não tendo ainda feito o estágio hospitalar cumpria a comissão como alferes de Infantaria.

O seu estado de espírito não podia ser pior. Estava deprimido e era completa a saturação e o desinteresse que manifestava por tudo quanto o rodeava.

Antes de partirmos acercou-se de mim e disse-me:

- “Não quero saber disto para nada, você comanda e eu vou ser apenas mais um soldado”… não mais o vi nem tão pouco dei pela sua presença…sumiu-se!

A operação decorreu num vale profundo de encostas bem acentuadas que se prolongava no sentido sul/norte e que tinham sido desmatadas até uma certa altura para aproveitarem o terreno na parte mais baixa e fértil.

Era agricultura de subsistência das populações que se tinham subtraído ao controle das autoridades portuguesas e viviam refugiadas no mato. Alguns deles, com armas, teriam recebido instrução militar e atacavam as tropas portuguesas nos acampamentos e nas picadas com minas anti-carro e emboscadas.

Começamos a deslocação para norte, pela encosta do lado esquerdo do vale, na orla do terreno que estava desmatado e encobertos pela vegetação da floresta.

Era-nos assim relativamente fácil observar o que se passava à nossa direita, mais abaixo, sem que o contrário fosse possível. Caminhávamos uns atrás dos outros numa fila que se prolongava por dezenas de metros e durante algum tempo nada aconteceu.

De repente ouvi um tiro, depois mais tiros, um alvoroço, alguns soldados descem a correr a encosta, atravessam o vale e perseguem pessoas que fogem em desespero subindo a encosta do outro lado. Regressam passado pouco tempo os que tinham saído em perseguição e a calma restabelece-se progressivamente…o drama estava consumado.

Uma jovem tinha sido morta por uma bala disparada de muito longe por um soldado. A bala entrara pelas costas e atravessara-lhe o coração causando-lhe morte instantânea. Um outro soldado cortou-lhe um dedo para trazer de recordação como troféu de guerra e eu… tive uma enorme vontade de fugir dali, desaparecer…eu que era o comandante daquela tropa e nem sequer podia recriminar o soldado que matou a jovem porque ele apenas cumprira as instruções do Quartel General de matar tudo o que mexesse, a tal “limpeza” a que já me referi.

Não conheci bem este soldado no sentido de que não tive com ele grande convivência. Era da minha Companhia mas não do meu Grupo de Combate. Tinha um aspecto possante, bem constituído fisicamente, de alcunha “o boi”, proveniente, de certo, de uma das nossas muitas aldeias como a maioria deles e no máximo teria a escola primária.

- Dizer-lhe que a utilização de uma arma, mesmo numa situação de guerra, é sempre da responsabilidade de quem a utiliza, faria algum sentido para ele?

- Manifestar-lhe o meu desagrado não seria estabelecer a confusão na sua cabeça?

- Perguntar-lhe se ele gostaria que fossem à sua aldeia e lhe matassem a irmã ou a namorada quando ela estivesse simplesmente a trabalhar no campo, era justo?

Do outro soldado, do que cortou o dedo do cadáver da jovem para recordação, não procurei saber na altura quem era, sentia demasiada vergonha, por mim e por ele.

Quarenta e cinco anos mais tarde, de cabeça baixa, envergonhado e arrependido disse-me em voz baixa…“eu era um garoto…” mas não seríamos todos nós uns garotos?

Foram para mim momentos de pânico e desorientação, não queria estar ali nem mais um minuto e por isso dei instruções para que continuássemos o nosso trajecto o mais rapidamente possível.

Atacar civis, pessoas indefesas, surpreendendo-as, não era guerra nenhuma era um morticínio, um assassinato.

Em todas as anteriores operações, cansado daquelas marchas, do calor, do ar saturado de humidade que não nos deixava respirar, do peso da espingarda, cartucheiras, bornal, capa de borracha, cantil que depressa esvaziava… quando à noite me deixava cair o que me esperava era sempre um sono profundo e descansado tendo por almofada o meu bornal e por lençóis a capa de borracha.

Sempre?... não! Naquela noite quase não preguei olho, os gritos de dor dos familiares da jovem morta ecoavam por todo aquele vale.

Eram gritos lancinantes, doridos, acusatórios e o silêncio que se lhes seguia parecia total, como se os bichos da floresta tivessem decidido calar-se nessa noite para eu melhor os poder ouvir. Noite irrepetível, perseguido por gritos que sentia serem ameaçadores de pessoas que expressavam a sua dor mas também a sua raiva, o seu justo desejo de vingança.

No outro dia, ainda o sol não nascera e já nos tínhamos posto em marcha que só não era forçada porque as condições do terreno e da vegetação não o permitia.

Era ténue a minha esperança de conseguir escapar à emboscada que de certo me esperaria em qualquer ponto do percurso. Quantos iríamos morrer? Os guerrilheiros não podiam permitir que a tropa fosse ao seu terreno, que era a sua casa, matar uma jovem do seu povo da mesma forma que se caça uma gazela e saísse do emaranhado de toda aquela vegetação com total impunidade. Era para eles uma questão de honra como seria para mim no lugar deles.

Por isso, começamos a andar ainda quase de noite e continuávamos a apressar o andamento na esperança de sair dali depressa antes que eles tivessem tempo de armar a emboscada.

Já era bem de dia quando o vale se bifurcou. Eu devia continuar em frente, sempre para norte, sempre por aquele vale. O Quartel-General sabia bem que era ao longo dele que se encontravam as populações e por isso o itinerário era aquele e não outro.

Mas chegados àquela bifurcação decidi desrespeitar as ordens, seguir pelo vale da esquerda, de vegetação muito mais densa de tal forma que era praticamente impossível montar ali uma emboscada ou o que quer que fosse e em distância parecia-me encurtar caminho.

Disse aos homens para encherem os cantis num fio de água que por ali passava e foi nesse momento, com eles agachados a recolherem a água e eu em pé, que o tiroteio começou.

Eles pensaram exactamente aquilo que eu iria fazer, aquele era o sítio certo para a emboscada, antes de fugir pelo vale da esquerda que tendo uma vegetação tão densa não permitiria qualquer acção militar.

Entretanto, os tiros prosseguiam e eu continuava de pé, indiferente, num aparente e ilusório desafio: …"vá, estou aqui, de pé, acertem-me se forem capazes, vinguem a vossa jovem que nós matámos…”

- “Meu alferes, saia daí, esconda-se, que eles matam-no!”… gritou-me o Maia, (já falecido) deitado atrás de um tronco de uma árvore caída no terreno.

Dirigi-me para junto dele, normalmente, com o passo de quem muda de mesa na esplanada do café e a inconsciência do perigo própria de quem não nasceu para aquelas coisas. Ainda hoje recordo não ter tido naqueles momento nenhuma sensação de medo... "aquelas balas não eram para mim... eu apenas estava assistindo a um filme de aventuras no cinema Politiama..."


-“Meu alferes, as balas aos seus pés até levantavam pó!” - disse-me o Maia quando me deitei ao seu lado.

Entretanto, alguém gritou que eles estavam em cima das árvores a fazerem fogo para cima de nós e logo tudo quanto tinha folhas e ramos foi varrido pelas rajadas das espingardas automáticas G3.

Nitidamente, o efeito de surpresa tinha passado e o nosso maior poder de fogo estava a impor-se.

Chamei o homem da bazuca, o “Capela”, e mandei-o disparar duas granadas na esperança de que alguma delas conseguisse passar por entre as árvores e explodisse contra a outra encosta do outro lado do vale.

A primeira rebentou logo à nossa frente, quase por cima das nossas cabeças, deu cabo de uma árvore que estava próxima e “choveram” bocadinhos de madeira para cima de nós.

Gritei-lhe:
- “É pá, levanta o cano dessa merda para ver se consegues fazer a granada passar por cima das árvores!

Inspirado pelos “deuses da guerra”, o homem da bazuca, à segunda tentativa, conseguiu que a granada passasse por entre as árvores, as sobrevoasse e estourasse contra a encosta do vale, em frente, lá no outro lado.

O efeito ultrapassou tudo o que se poderia esperar: o estrondo do rebentamento multiplicado vezes sem conta pelo eco, possível pelo facto das encostas serem suficientemente íngremes e próximas a funcionarem como paredes em frente uma da outra, parecia coisa do apocalipse.

De repente, “vinte exércitos” tinham entrado em cena e accionado os seus dispositivos de lançamento de granadas. Quando, finalmente, os ecos dos rebentamentos se deixaram de ouvir, a guerra tinha acabado, a calma e o silêncio estabeleceram-se como se nada ali tivesse acontecido.

O “Capela” e a bazuca tinham acabado de ganhar a guerra…

Levantámo-nos lentamente olhando e perguntando uns pelos outros e inacreditavelmente estavam todos bem, apenas um sargento enfermeiro, de mais idade e pesado, tinha desmaiado de comoção mas estava a recuperar.

Tiveram a oportunidade de uma justa vingança e não a aproveitaram. Dispararam de surpresa de cima das árvores a distâncias que não eram muito grandes e poderiam ter-nos causado inúmeras baixas…éramos mais de cinquenta alvos.

Em vez disso, não acertaram em ninguém, a jovem não foi vingada… mas eles tentaram, cumpriram a sua obrigação, provavelmente com feridos ou mortos pois foram vistos alguns a atirarem-se das árvores, não sabemos se atingidos ou não.

A continuação da marcha foi penosa, momentos houve em que a vegetação de tão densa que era aprisionava-nos de pernas e braços, obrigando a recuos e avanços que eram uma autêntica luta contra o emaranhado dos ramos.

Finalmente, exaustos de cansaço, fome e sede porque no meio de toda aquela confusão e na pressa de abandonar o local nem enchemos os cantis de água, lá chegámos ao destino, já de noite mas vivos e sem feridos.

Aquilo que a cada um de nós nos separou da morte nesse dia, foi um simples capricho do acaso.

Quarenta e oito anos depois convenço-me cada vez mais que é ele, o acaso, que comanda o processo, sempre o comandou. Todo a evolução, em grande medida, foi determinado pelo acaso e as nossas humildes vidas, claro, não lhe podiam fugir.

Pensei muitas vezes, ao longo de todos estes anos, naquela jovem com um sentimento de culpa pela sua morte. Propositadamente, não quis vê-la para não lhe recordar o rosto pela vida afora mas é fácil imaginá-lo e ele tem-me acompanhado, sinal de que a minha consciência não está completamente descansada.

Afinal, eu era o comandante daquela Operação e antes dela começar deveria ter dado instruções a todos os soldados para que, a menos que fôssemos atacados, ninguém daria tiros sem minha autorização. Esta ordem ficou por dar e custou a vida àquela rapariga e a minha consciência carregará sempre esse peso.

Para ela, flores…todas as flores deste mundo!

Bom Domingo para todos.

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