domingo, dezembro 18, 2011

HOJE É DOMINGO




Era o dia 18 de Abril de 1951, a manhã estava soalheira e a velha camioneta do Colégio de S. João de Brito, à data o espaço com maior densidade de meninos ricos por metro quadrado da cidade de Lisboa (ele, era o gordo Xara Brasil que à tarde voltava para casa num "bruto espada” com chôfer, os irmãos Simãos de Almeida e Salazar de Sousa, o Barahona Vanzeller, Sousa Uva, etc… ) regressava ao ponto de partida depois de ter recolhido os alunos para mais um dia de aulas, muitas rezas e pontapés na bola durante os recreios.

O ensino no Colégio de Jesuítas dava a estas famílias a garantia de qualidade e, principalmente, oferecia um ambiente que assegurava a transmissão dos valores morais e religiosos tão queridos às classes ricas e de linhagem tradicional.

Compreensível, de resto, pois foi ao abrigo desses princípios morais e religiosos que elas se constituíram, que os seus patrimónios se acumularam e os privilégios se foram impondo ao longo de gerações depois de há muitos séculos atrás os líderes da Igreja de Roma, aliada e cúmplice do poder e da riqueza, terem apagado a mensagem de justiça e igualdade de Jesus da Nazaré.

Eu era dos primeiros a embarcar juntamente com outro colega, o Jorge Manuel Barahona Vanzeller (há nomes assim, colam-se a nós e por cem anos que vivamos temo-los sempre na ponta da língua), menino-família, como o nome faz pressupor, brasonada, que era acompanhado até à porta do solar onde residia por uma jovem criada impecavelmente fardada.

Lembro-me bem dele porque durante a viagem, desde os Caminhos-de-Ferro, ali a Sta. Apolónia, até ao Colégio, ao fundo da Alameda das Linhas de Torres, íamos para os bancos do fundo da camioneta e ali ficávamos a falar dos nossos heróis das histórias de aventuras de que éramos apaixonados.

A viagem decorria sempre de forma pachorrenta como tudo, aliás, era pachorrento nessa altura no país. Na Europa grassava a guerra, a morte, o sofrimento, as tropas de Hitler esmagavam populações, velhos e crianças, mas a nossa camioneta velhinha de formas arredondadas, transportava os meninos mais felizes do mundo.

Finalmente, ao fim de uma prolongada viagem parando aqui e acolá, recolhendo menino por menino numa Lisboa sem trânsito, abrandava, virava à direita, parava junto a um portão de ferro e o motorista tocava o “clakson”, como então se dizia, até que um trabalhador da quinta o vinha abrir.

À nossa frente uma alameda e ao fundo dela, correndo aos saltos e agitando os braços na direcção da camioneta, um menino de calções, gordo e desajeitado, gritava:

-Morreu o Carmona! Morreu o Carmona! … Vamos para casa!

O Carmona era o Presidente da República e o menino de calções, gordo e desajeitado era o Ary dos Santos, inconfundível, exuberante, esfusiante, meio louco, que por morar ali perto chegava primeiro que todos e soube logo da notícia porque as sobrinhas do Presidente tinham ido à capela do Colégio, ainda de madrugada, encomendar a Deus a alma do tio.

O Ary era uma explosão de energia, de irreverência que escandalizava e surpreendia quando saltava para as costas do padre, professor de português, e o obrigava a correr fazendo ele de cavaleiro. Era uma força da natureza e se alguém poderia vir a escrever os versos com que termino o Hoje é Domingo esse alguém, pela sua genialidade, só poderia ser o José Carlos Ary dos Santos.

Nunca a poesia explodiu na boca de um poeta como na do Ary. As palavras eram balas certeiras contra as injustiças e misérias deste mundo e só ouvindo-o se pode ter a noção da sua força arrebatadora.




Poeta Castrado, Não!

Serei tudo o que disserem
por
inveja ou negação:
cabeçudo dromedário
fogueira de exibição
teorema corolário
poema de mão em mão
lãzudo publicitário
malabarista cabrão.
serei tudo o que disserem:
poeta castrado não.

Os que entendem como eu
as linhas com que me escrevo
reconhecem o que é meu
em tudo quanto lhes devo:
ternura como já disse
sempre que faço um poema;
saudade que se partisse
me alagaria de pena;
e também uma alegria
uma coragem serena
em renegar a poesia
quando ela nos envenena

Os que entendem como eu
a força que tem um verso
reconhecem o que é seu
quando lhes mostro o reverso:

Da fome já não se fala
-é tão vulgar que nos cansa -
mas que dizer de uma bala
num esqueleto de criança?

Do frio não reza a história
-a morte é branda e letal -
mas que dizer da memória
de uma bomba de napalm?

E o resto que pode ser
o poema dia a dia?
-Um bisturi a crescer
nas coxas de uma judia;
um filho que vai nascer
parido por asfixia?!
Ah não me venham dizer
que é fonética a poesia!

Serei tudo o que disserem
Por temor ou negação:
Demagogo mau profeta
Falso médico ladrão
Prostituta proxeneta
Espoleta televisão.
Serei tudo o que disserem
Poeta castrado não!




José Carlos Ary dos Santos

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