TEREZA
BATISTA
CANSADA
DE
GUERRA
Episódio Nº 297
Parte a carga de cavalaria, dissolve-se a procissão, os guardas baixam os cassetetes, os investigadores apontam os revólveres. A imagem de Santo Onofre fica depositada no chão, em pé. Ao lado, Vovó continua a puxar a ladainha. Tem pelo menos cem anos de idade e mil de puta. Basta ver-lhe as rugas, a cara chocha, a boca sem dentes, mas ainda gosta de brigar e de louvar os santos:
Ave, ave Maria
Ave, ave Maria
O comissário Labão corre para fazê-la calar-se, tropeça num buraco, tomba, rola, não se levanta. Mesmo caído, atira, a velha emudece, o canto cessa, o silêncio cobre a praça inteira.
Junto da imagem do santo o corpo pequeno e gasto de vovó; morreu rezando, morreu brigando, morreu contente.
Tiras acodem ao comissário, ajudam-no a erguer-se, mas ele não consegue firmar-se de pé, partidos os ossos das duas pernas.
O investigador Alírio, apavorado, joga-se no chão, bate a cabeça nas pedras, bem ele avisara: comissário, não seja doido, não toque em Exu.
Os carros rumam para o edifício central, lotados de presos, mulheres e boémios, praticamente a zona inteira foi de cana. No comando da limpeza final ainda permanece alguns minutos o investigador Peixe Cação. Mas tem pressa, no depósito, bem guardada, Tereza Batista espera.
Mais uma vez tentarão ensinar-lhe o respeito e a obediência. Peixe Cação esfrega as mãos, em noite de tanto descalabro uma alegria.
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Quando os marinheiros americanos chegam ao centro da zona, ao Largo do Pelourinho, à sombra dos casarões coloniais, na esperança de mulheres belas e alegres, encontram apenas uma, e essa é velha coroca, sem idade, imprestável mesmo se não estivesse morta, estendida ao lado de Santo Onofre, padroeiro das putas.
Ainda no pasmo da visão inesperada, recebem ordens estritas de retorno imediato e obrigatório aos navios: a cidade está em pânico. A festa fica transferida.
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Milagres de mais na opinião do amigo, descrente dessas abusões. Orixás acontecendo a cada instante, encantamentos e magias. Velho de barbas e bordão surgindo de repente, a fechar os caminhos da polícia, a abrir portas de Igreja, poeta morto há cem anos salvando raparigas, Ogum Peixe Marinho infundindo confiança, Exu empurrando o revoltado comissário, fazendo-o estatelar-se, quebrando-lhe de vez as duas pernas, Santo Onofre zelando no deserto chão da zona o corpo de Vovó – para um materialista é dose bruta, o amigo deseja o relato da verdade pura e não feitiçarias.
Não discuto a conta feita pelo amigo, o número certo das intervenções indébitas, mas não se esqueça que o caso se deu na cidade da Bahia, situada no oriente do mundo, terra de esconjuros e oboés. Aqui, meu prezado, os absurdos são o pão de cada dia desse povo incapaz de inventar uma mentira ainda mais a propósito de assunto tão mexido.
Me diga o distinto, por favor: como seria possível a putas, sem tostão, sem armas e sem leitura, enfrentar a polícia e ganhar do balaio fechado se não contassem com a ajuda de santos e orixás, de feiticeiros e poetas? O que teria sido delas me responde, se para tanto tem competência e fantasia. (click na imagem)
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