HOJE É DOMINGO
(Da minha cidade de Santarém)
A vida dos povos é como a água dos rios: tanto uma como outra fluem… A água dos rios ao sabor da marcha dos terrenos e a vida ao sabor dos “tempos” e “tempos” é tudo o que determina, influencia e explica as nossas existências num emaranhado de razões a que se convencionou chamar os “tempos”.
E, “tempos” houve, em que alguém, vivendo entre os povos do norte de África e percebendo que os porcos que de porcos só têm o nome e, pelo contrário, adoram chafurdar no meio das poças de água, decidiu que eles não eram bem-vindos àquelas paragens face à escassez do precioso líquido.
A proibição assumiu mesmo uma tal importância que foi o próprio profeta Maomé que a impôs a todos os seguidores da sua religião, na linha do que já acontecia com os judeus e, desta forma, se viu o porco livre daquele destino cruel que é o de nascer e ser criado para acabar com uma faca espetada no coração exactamente por aqueles que dele cuidaram com todo o desvelo desde tenra idade.
Mas, como neste extremo da Europa a água era coisa que não faltava, deixou de haver argumento que privasse os povos que aqui habitavam de aproveitar para a sua alimentação a carne mais saborosa de quantas a natureza criou, excepção feita aos javalis, que são primos e faziam as delícias do nosso amigo Obelix …
O porco é um dos primeiros animais domésticos e entre nós adquiriu uma importância que ultrapassou em muito a do seu valor alimentar para se constituir num factor de natureza sociológica e cultural.
No norte do país dizia-se que um indivíduo era tão pobre que nem tinha um porco para matar e por alguma razão os mealheiros antigos, de barro, tinham a configuração de um porco já que ele assegurava, ao longo de um ano, preservado em sal, na sua própria gordura ou fumado, as deliciosas proteínas constituindo aquilo que na aldeia dos meus avós, na Beira Baixa, chamavam: “o governo da casa”.
Mas antigamente as pessoas eram muito pobres e poucas eram aquelas que conseguiam criar e matar um porco. Eram os ricos que distribuíam por eles alguma carne para lhes adocicar um pouco a boca.
Até à década de sessenta, a matança tradicional era uma simples festa familiar ou uma refeição de trabalho festiva em que se comiam as partes mais perecíveis do animal, que não eram salgadas nem fumadas, como o sangue, o fígado e pulmão para além da carne velha do porco do ano anterior que ainda sobrava na salgadeira.
Esta situação traduzia a escassez que então se vivia e daí o ditado: “ossos de suão, barba untada, barriga em vão”.
Só a partir daquela década, com algum desafogo proveniente da emigração, é que as Festas da Matança do Porco adquiriram uma dimensão que variava em função das posses de cada um podendo agrupar, as mais pequenas, entre 10 a 12 pessoas das quais faziam parte os familiares e vizinhos e as maiores, ao nível do Concelho, de 40 a 100 convivas.
As pequenas e médias Matanças tinham como função contribuir para o estreitamento do pequeno núcleo produtivo no seio da sua esfera habitual de entreajuda, enquanto que as grandes tinham a ver com questões de prestígio e de ostentação de riqueza das “antigas casas grandes”.
As tradicionais Matanças estão a desaparecer e são muito poucos aqueles que levam à risca os rituais desta prática comunitária em que participavam amigos e familiares e que tantas saudades me deixou quando, em rapazinho, participava nelas em casa dos meus avós.
Mais uma vez, são os “tempos” que levam coisas e trazem coisas a tal ponto que os regulamentos da Comunidade Europeia proibiram que as tradicionais Matanças do Porco, mesmo as de âmbito familiar, pudessem acontecer sem a presença de um veterinário para atestar o estado de saúde do animal e as condições sanitárias (?!?...?!?).
Que exagero, que falta de ligação à realidade…então, não são os próprios donos do animal que o alimentam e acompanham diariamente que logo chamam o veterinário se ele deixa de comer ou apresenta alguma anomalia no seu comportamento?
E quanto às condições sanitárias, alguém espera encontrar na casa de uma aldeia um mini matadouro para além de um armazém varrido e lavado mais a banca de matar o porco e as facas próprias para cada desempenho devidamente afiadas?
Mas, desta vez, os nossos representantes em Bruxelas, bateram-se galhardamente na defesa das nossas tradições que estavam condicionadas desde 2003 e a título excepcional correu até um Edital pelas Juntas de Freguesia a autorizar o abate caseiro do porco sem interferência da autoridade veterinária.
Uf… que alívio, já posso novamente pensar em deliciar-me com o “arroz do osso do peito” e a “semineta da matança”, pratos tradicionais daquela região, ainda do Ribatejo, no limite com a Beira-Baixa, confeccionados pela mão experiente e conhecedora da Sra. Maria, daquele porco que foi morto pela facada certeira do T’i Margalho, sem corrermos o risco de irmos todos presos.
Mas isto sou eu a pensar…porque já não há pocilga, não há porco e a Sra. Maria e o T’i Margalho há muitos anos que morreram… da mesma maneira que comigo irão morrer as saudades das pessoas e dos sabores, em suma, a saudade daqueles “tempos”…
(Da minha cidade de Santarém)
A vida dos povos é como a água dos rios: tanto uma como outra fluem… A água dos rios ao sabor da marcha dos terrenos e a vida ao sabor dos “tempos” e “tempos” é tudo o que determina, influencia e explica as nossas existências num emaranhado de razões a que se convencionou chamar os “tempos”.
E, “tempos” houve, em que alguém, vivendo entre os povos do norte de África e percebendo que os porcos que de porcos só têm o nome e, pelo contrário, adoram chafurdar no meio das poças de água, decidiu que eles não eram bem-vindos àquelas paragens face à escassez do precioso líquido.
A proibição assumiu mesmo uma tal importância que foi o próprio profeta Maomé que a impôs a todos os seguidores da sua religião, na linha do que já acontecia com os judeus e, desta forma, se viu o porco livre daquele destino cruel que é o de nascer e ser criado para acabar com uma faca espetada no coração exactamente por aqueles que dele cuidaram com todo o desvelo desde tenra idade.
Mas, como neste extremo da Europa a água era coisa que não faltava, deixou de haver argumento que privasse os povos que aqui habitavam de aproveitar para a sua alimentação a carne mais saborosa de quantas a natureza criou, excepção feita aos javalis, que são primos e faziam as delícias do nosso amigo Obelix …
O porco é um dos primeiros animais domésticos e entre nós adquiriu uma importância que ultrapassou em muito a do seu valor alimentar para se constituir num factor de natureza sociológica e cultural.
No norte do país dizia-se que um indivíduo era tão pobre que nem tinha um porco para matar e por alguma razão os mealheiros antigos, de barro, tinham a configuração de um porco já que ele assegurava, ao longo de um ano, preservado em sal, na sua própria gordura ou fumado, as deliciosas proteínas constituindo aquilo que na aldeia dos meus avós, na Beira Baixa, chamavam: “o governo da casa”.
Mas antigamente as pessoas eram muito pobres e poucas eram aquelas que conseguiam criar e matar um porco. Eram os ricos que distribuíam por eles alguma carne para lhes adocicar um pouco a boca.
Até à década de sessenta, a matança tradicional era uma simples festa familiar ou uma refeição de trabalho festiva em que se comiam as partes mais perecíveis do animal, que não eram salgadas nem fumadas, como o sangue, o fígado e pulmão para além da carne velha do porco do ano anterior que ainda sobrava na salgadeira.
Esta situação traduzia a escassez que então se vivia e daí o ditado: “ossos de suão, barba untada, barriga em vão”.
Só a partir daquela década, com algum desafogo proveniente da emigração, é que as Festas da Matança do Porco adquiriram uma dimensão que variava em função das posses de cada um podendo agrupar, as mais pequenas, entre 10 a 12 pessoas das quais faziam parte os familiares e vizinhos e as maiores, ao nível do Concelho, de 40 a 100 convivas.
As pequenas e médias Matanças tinham como função contribuir para o estreitamento do pequeno núcleo produtivo no seio da sua esfera habitual de entreajuda, enquanto que as grandes tinham a ver com questões de prestígio e de ostentação de riqueza das “antigas casas grandes”.
As tradicionais Matanças estão a desaparecer e são muito poucos aqueles que levam à risca os rituais desta prática comunitária em que participavam amigos e familiares e que tantas saudades me deixou quando, em rapazinho, participava nelas em casa dos meus avós.
Mais uma vez, são os “tempos” que levam coisas e trazem coisas a tal ponto que os regulamentos da Comunidade Europeia proibiram que as tradicionais Matanças do Porco, mesmo as de âmbito familiar, pudessem acontecer sem a presença de um veterinário para atestar o estado de saúde do animal e as condições sanitárias (?!?...?!?).
Que exagero, que falta de ligação à realidade…então, não são os próprios donos do animal que o alimentam e acompanham diariamente que logo chamam o veterinário se ele deixa de comer ou apresenta alguma anomalia no seu comportamento?
E quanto às condições sanitárias, alguém espera encontrar na casa de uma aldeia um mini matadouro para além de um armazém varrido e lavado mais a banca de matar o porco e as facas próprias para cada desempenho devidamente afiadas?
Mas, desta vez, os nossos representantes em Bruxelas, bateram-se galhardamente na defesa das nossas tradições que estavam condicionadas desde 2003 e a título excepcional correu até um Edital pelas Juntas de Freguesia a autorizar o abate caseiro do porco sem interferência da autoridade veterinária.
Uf… que alívio, já posso novamente pensar em deliciar-me com o “arroz do osso do peito” e a “semineta da matança”, pratos tradicionais daquela região, ainda do Ribatejo, no limite com a Beira-Baixa, confeccionados pela mão experiente e conhecedora da Sra. Maria, daquele porco que foi morto pela facada certeira do T’i Margalho, sem corrermos o risco de irmos todos presos.
Mas isto sou eu a pensar…porque já não há pocilga, não há porco e a Sra. Maria e o T’i Margalho há muitos anos que morreram… da mesma maneira que comigo irão morrer as saudades das pessoas e dos sabores, em suma, a saudade daqueles “tempos”…
(click na imagem da cidade de Santarém que, como se percebe é de outros "tempos"... )
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