domingo, fevereiro 26, 2012

HOJE É DOMINGO



(Da minha cidade de Santarém)





A MINHA PROFESSORA, A Srª. Dª. LUDOVINA

Estávamos em meados da década de 40 quando entrei para a escola e os professores constituíam, nessa época, um dos pilares do Estado Novo para transmitirem às novas gerações os princípios da doutrina social do regime de Salazar.

Com cinco anos de idade eu não entendia nada disso mas o que eu posso dizer é que a minha Prof.ª, Srª. Dª. Ludovina, foi a pessoa de quem eu tive mais medo/ respeito em toda a minha vida e, por isso, quando hoje se discute a polémica da autoridade nas escolas não posso deixar de pensar na minha professora da escola primária que foi, para mim, a personificação da própria autoridade com tudo o que este conceito tem de negativo.

Já em fim de carreira por força da idade, a Srª. Dª. Ludovina parecia, aos meus olhos de criança, ter sido sempre velha, gorda, com os pulsos grossos como os dos homens mas cheios de pulseiras e com aquele carrapito pregado na nuca, mais se assemelhava a uma espécie de carrasco de crianças indefesas que nos aparecia nos sonhos maus enquanto dormimos.

Depois, tinha instrumentos de tortura:

- Um ponteiro que ela mantinha ao alto, do seu lado direito, espécie de guarda-pretoriana, com que vergastava a cabeça dos alunos quando os chamava ao quadro negro ou ao mapa e as coisas não corriam bem;

- Uma régua com cerca de 50cm de comprimento por 1 de espessura e que ela usava de duas maneiras: segurando na mão do aluno com a esquerda e batendo com a direita dobrando-lhe bem os dedos para baixo de forma a expor o mais possível a palma da mão ao impacto com a régua ou, numa versão mais dura, pondo as costas da mão do aluno em cima da secretária numa faixa em que ela não era lisa e batendo-lhe com a régua com toda a sua força, puxando o braço bem atrás e acima sendo que o resultado era sempre o mesmo; mãos inchadas, às vezes mesmo muito inchadas como trambolhos.

-O terceiro instrumento de tortura, este de carácter psicológico, consistia numa carapuça de papel com orelhas de burro que era colocada na cabeça do aluno exposto à janela com um livro aberto nas mãos para escárnio e troça de toda a rapaziada que passava na rua vinda do “bairro-chinês”, o primeiro e mais antigo bairro de lata da cidade de Lisboa, erradicado ao tempo em que João Soares foi Presidente da Câmara.

Este foi o cenário com que eu, aos 5 anos, me deparei quando cheguei à escola e por isso, regressado, um dia a casa, disse à minha mãe:

- Mamã, não vou mais à escola porque eu não sei nada!

Tentava eu, considerando-me à partida um caso perdido para o ensino, escapar à tortura que me esperava…mas sem resultado, já se vê.

Não interessa se fiz a 4ª Classe aos 9 anos com distinção porque durante todo o tempo em que andei na escola considerei-me a criança mais infeliz deste mundo e, por arrastamento, odiei o estudo, os livros e o ensino invejando sinceramente os miúdos da rua, de pé descalço, que não andavam na escola e não tinham que ter medo da Srª. D.ª Ludovina mesmo que à noite só tivessem um bocado de pão para comer e um colchão duro para dormir.

Confrontando a minha dolorosa experiência enquanto aluno da instrução primária com as cenas daquele vídeo que correu por aí mostrado até à exaustão, em que uma professora e aluna se digladiam na sala de aulas o que, ao que parece, está longe de ser caso único, tenho de concluir que ao tempo que levo de vida e do mundo este já não tem nada a ver com aquele onde nasci e não é por haver hoje coisas que então não existiam então, ao nível de máquinas e tecnologia, é porque as pessoas vivem e relacionam-se de maneira não só diferente como às vezes mesmo quase oposta. Em 1945 as crianças tremiam quando entravam na sal de aulas, hoje, quem treme são os professores.

A minha professora, a Srª. Dª. Ludovina, (o respeito e medo que ela me inspirou fará, mesmo 100 anos que eu viva, a tratá-la sempre assim… Srª Dª Ludovina!) provocou estragos em mim que perduraram pela vida fora porque não é impunemente que se é criança… e vítima de uma professora que sendo uma pessoa autoritária tinha ainda atrás de si a dar-lhe força um estado autoritário, uma cultura autoritária, famílias autoritárias. Tudo estava a favor dela: apoio e consentimento dos pais e do governo cujo regime político era de molde a inculcar nos cidadãos, quanto mais cedo melhor, estados de espírito de medo, obediência cega, disciplina indiscutível.

Nas escolas de Salazar os professores não existiam só para ensinar mas também para amedrontar porque aquilo que se preparava era uma nova sociedade de pessoas, ordeiras, bem comportadas, respeitadoras, tementes a Deus e a toda a espécie de autoridades terrenas que usassem farda ou desempenhassem cargos oficiais.

A transmissão de conhecimentos é um processo árduo e difícil, que exige entrega, vontade, sacrifício, concentração, trabalho e, naturalmente, o cenário propício para que ele possa ocorrer não é, com certeza, uma escola onde, ao entrar, como referia uma professora de matemática, a sala de aulas mais parece um manicómio … e como os tempos do ponteiro, da palmatória e das orelhas de burro já lá vão, professores e alunos têm que se entenderem e partirem para o equilíbrio nas suas relações.

A minha neta, depois de 3 anos no Jardim Escola, que adorou, iniciou este ano a Escola a sério com o mesmo estado de espírito. Só acha que a professora grita de mais e escusadamente, sem necessidade.

No Jardim Escola puseram-lhe a alcunha da “crescida”e agora na Escola chamam-lhe “a mãe” e eu acho que ela ainda acaba em assistente da professora…

Em 1945, com a Professora Srª Dª Ludovina, não seria possível à Filipa adorar a escola como ela adora. Sensível como é rejeitaria um ambiente de violência física que a traumatizaria. Despertar nos alunos o amor pelos livros e pela aprendizagem é a principal missão de um professor, exactamente o contrário do que fazia a minha Professora de Instrução Primária, Srº. Dª. Ludovina.

Site Meter