quarta-feira, março 28, 2012

GABRIELA

CRAVO

E

CANELA


Episódio Nº 59



Ela não respondeu. Ia pelo caminho quase saltitante. Parecia uma demente com aquele cabelo desmazelado, envolta em sujeira, os pés feridos, trapos rotos sobre o corpo. Mas Clemente a via esguia e formosa, a cabeleira solta e o rosto fino, as pernas altas e o busto levantado. Fechou ainda mais o rosto, queria tê-la consigo para sempre. Como viver sem o calor de Gabriela?

Quando, no início da viagem, os grupos se encontraram, logo reparou na moça. Ela vinha com um tio, acabado e doente, sacudido o tempo todo pela tosse. Nos primeiros dias ele a observara de longe, sem coragem sequer para aproximar-se. Ela ia de um para outro, conversando, ajudando, consolando.

Nas noites da caatinga, povoadas de cobras e de medo, Clemente tomava da harmónica e os sons enchiam a solidão. O negro Fagundes contava histórias de valentias, coisas de cangaço, andara metido com jagunços, matara gente.

Punha em Gabriela uns olhos pesados e humildes, obedecia-lhe pressurosamente quando ele lhe pedia que fosse buscar uma lata com água.

Clemente tocava para Gabriela, mas não se atrevia a dirigir-lhe a palavra. Foi ela quem veio, certa noite, com seu passo de dança e seus olhos de inocência para junto dele, puxar conversa. O tio dormia numa agitação de falta de ar, ela encostou-se numa árvore. O negro Fagundes narrava:

- Tinha cinco soldados, cinco macacos que a gente comeu na faca para não gastar munição…

Na noite escura e assustadora, Clemente sentia a presença vizinha de Gabriela, não se animava sequer a olhar para a árvore à qual ela se encostara, um umbuzeiro. Os sons morreram na harmónica, a voz de Fagundes ressaltou no silêncio. Gabriela falou baixinho:

- Não pare de tocar senão vão arreparar.

Atacou uma melodia do sertão, estava com um nó na garganta. A moça começou a cantar em surdina. A noite ia alta, a fogueira morria em brasas, quando ela deitou-se junto dele como se nada fora. Noite tão escura, quase não se viam.

Desde aquela noite milagrosa, Clemente vivia no terror de perdê-la. Pensara a princípio que, tendo acontecido, ele já não a largaria, iria correr sua sorte nas matas dessa terra do cacau. Mas logo se desiludiu. Durante a caminhada ela se comportava como se nada houvesse entre eles, tratava-o da mesma maneira que aos demais.

Era de natural risonha e brincalhona, trocava graças com o negro Fagundes, distribuía sorrisos e obtinha de todos o que quisesse. Mas quando a noite chegava, após ter cuidado do tio, vinha para o canto distante onde ele ia meter-se e deitava-se a seu lado, como se para outra coisa não houvesse vivido o dia o dia inteiro. Se entregava toda abandonada nas mãos dele, morrendo em suspiros, gemendo e rindo.

No outro dia, quando ele, preso a Gabriela como se ela fosse sua própria vida, queria concretizar os planos de futuro, ela apenas ria, quase a mofar-se dele, e ia embora ajudar o tio, cada vez mais fatigado e magro.

Uma tarde tiveram que parar o caminho, o tio de Gabriela estava nas últimas. Vinha cuspindo sangue, não aguentava mais andar. O negro Fagundes jogou-o nas costas como um fardo e o carregou durante um pedaço do caminho. O velho ia arfando, a Gabriela a seu lado.

Morreu de tardinha, botando sangue pela boca: os urubus voavam sobre o cadáver.
(Click na imagem da Gabriela que, chegada do sertão a Ilhéus, admira um dos poucos automóveis existentes na cidade.)

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