domingo, junho 03, 2012


HOJE É 


DOMINGO

 Penso que gostamos mais das terras onde nascemos quando, pelas circunstâncias da vida, as temos que deixar.

Então, se for uma grande cidade com aquela dinâmica própria das grandes cidades, esse sentimento, pela ausência, ainda mais se acentua.

Furtamo-nos à poluição, ao trânsito, ao receio por uma maior insegurança e o que permanece é a imagem colorida feita saudade, um misto de sentimentos que mete ruas, praças, jardins, prédios… a nossa vida feita aos retalhos, um pedacinho neste lugar, outro além, naquele outro.

Memórias que nos aconchegam a alma e nos devolvem, de regresso, ao nosso banco do jardim, à sombra daquela árvore, ao passeio da frente com a paragem do eléctrico e, de repente, o polícia de turno que passa no seu andar calmo, mãos atrás das costas, seguro, tão seguro e confiante de si próprio que nos faz sentir aliados da autoridade.

Setenta anos de vida que não se somam em parcelas iguais, longe disso, a maior parte passaram incógnitas, não me lembro delas, não interessam, foram ram-ram, folhas de uma agenda que se rasgaram e perderam… procuro-as na minha memória e não as encontro.

À primeira vista parece um enorme desperdício, pensando melhor, foi mesmo um grande desperdício, o mesmo que enche a vida de tantas pessoas que, como eu, não deram conta de que o relógio estava a contar, hora a hora, minuto a minuto, todos exactamente com a mesma duração, todos sem retorno.

Mas a minha cidade natal, essa, está lá toda, guardada, encerrada na caixinha das minhas memórias. Os acrescentos não têm nada a ver comigo nem com ela.

Lembram-se da inauguração da Expo/98? Das filas intermináveis para os bilhetes de acesso, da euforia criada pelas expectativas de algo verdadeiramente novo, moderno, arejado?

Nunca me senti tão orgulhoso da minha cidade, comovi-me quando pela primeira vez entrei naquele espaço e me apeteceu correr ao encontro dos responsáveis de tudo aquilo que via ao meu redor no enquadramento mágico do estuário do Tejo, abraça-los e dizer-lhes obrigado.

Apeteceu-me recuar 50 anos e partir à desfilada por toda a Lisboa a gritar:

-“Venham cá agora, venham ver o meu bairro de operários, dos Armazéns de Vinho do Abel Pereira da Fonseca, da Fábrica do Material de Guerra, do Sabão, dos Bilhetes de Eléctrico a dois tostões destinados aos operários, do fim da linha do eléctrico no Poço do Bispo.

 Venham cá agora, seus vaidosos, convencidos, do Bairro de Alvalade, da Baixa, do Chiado…venham cá agora!”

Ah… se fosse possível misturar os tempos!

Eu tinha razões especiais:

- Quase sessenta anos antes, em 1939, tinha nascido muito perto dali, na R. José do Patrocínio, num prédio de azulejos verdes, dois pisos, terraço, varanda a toda a largura, muito bonito. Encostaram-no, no entanto, à linha do comboio que ali passava sobre uma ponte que ficava à altura da janela do primeiro andar e quando o “rápido” passava todos os objectos lá em casa saltavam.

 - Como é que vocês podem viver aqui?

 - Por quê? – Ah, o comboio, nem damos por ele, ou por outra, damos mas, de habituados, não ligamos.

O local da Expo/98 era, então, no fim dos anos 80, um campo de contentores, matadouros e indústrias poluentes com a dimensão de 40 hectares. Um verdadeiro nojo e uma ameaça para o leito do estuário do Tejo com o qual confinava.


Aí nasceu a Exposição Internacional de Lisboa de 1998,  com 11 milhões de visitantes foi considerada a melhor Exposição Mundial de sempre. Do passado, e para recordar o que tinha sido aquele espaço, lá ficou a Torre da Refinaria da Petrogal.


Do meu tempo, continuo a recordar com saudade, o fim da linha dos eléctricos, da Estação do Poço do Bispo onde o condutor se apeava para mudar o “troley”, inverter a marcha e regressar ao Terreiro do Paço. Ali próximo iria aparecer e crescer aquele que viria a ser, o maior depósito de lixos tóxicos, algo a que à data apenas se chamava, prosaicamente, de porcaria e onde, anos mais tarde, nasceria, quase como por artes mágicas, a Expo/98, o maior, mais belo e surpreendente projecto de recuperação urbanística da cidade de Lisboa.

O Bairro de Marvila, era o local, por excelência, das tabernas e carvoarias, das fábricas, dos operários e dos copos de três, no tempo em que beber vinho era dar de comer a um milhão de portugueses.

O meu pai era proprietário de duas dessas tabernas e carvoarias, uma em Vale Formoso e outra na Rua Direita de Marvila e ao Domingo, quando ganhava o C.O.L (Clube Oriental de Lisboa), aumentava a euforia e o negócio do vinho a copo à mesa e ao balcão.

Ainda se faziam sentir os efeitos da guerra terminada em 45, das senhas de racionamento, das dificuldades, não para mim que era filho de pai, então rico, usava calções, meias de soquete e chamava de mamã à minha mãe.

Em 1937 o meu pai alugou uma moradia quase no fim da Rua José do Patrocínio onde então, quando chovia muito, desaguava tudo, cheia abaixo, vindo do Bairro Chinês, o mais antigo bairro de lata da cidade de Lisboa e que foi varrido do mapa, para orgulho dele, pelo Dr. João Soares, Presidente da Câmara.


A moradia, numa cota mais alta do que a rua, tinha um amplo terraço em toda a sua frente servida por uma dupla escadaria, a primeira até um portão de ferro pintado de verde e a outra até à rua.

O edifício era de dois pisos ligados por uma escadaria interior muito bonita, em madeira exótica, que se abria em leque ao chegar hall. A parede da frente do prédio era toda revestida a azulejos verdes com uma varanda estreita a toda a largura e a encimá-lo bonitas figuras de pedra. 

Que fazia ali aquela moradia? Quem era o seu dono? Por que razão a construíra às portas do Bairro Chinês, encostada a uma ponte por onde o comboio ao passar fazia estremecer toda a casa?

Ou será que tudo nasceu, mais ou menos, em simultâneo? O prédio, a ponte com o comboio a passar e o bairro de lata?

 - Ah… não sei como vocês podem viver aqui!

 - Porquê? Eu não dei por nada, nasci com o barulho do comboio, já o ouvia quando ainda estava na barriga da minha mãe.

Depois, via-os passar do meu terraço: eram todos pretos, à excepção de um que era branco, o “comboio de prata”, o rápido que ia para o Norte, levava sempre muita pressa e de tão junto que passava da minha casa até parecia que a ia atropelar.

Ainda hoje os ouço nas minhas recordações no seu matraquear característico, especialmente quando iniciavam a marcha na estação de Braço de Prata, ali próxima e vinham por ali fora a tomar velocidade até começarem a abrandar para a próxima estação.

Pou-ca-te-rra…pou-ca-te-rra…pou-ca-te-rra…pou-ca-te-rra….ÚÙÙÙ… e lá vinha ele a resfolgar vomitando fumo pela chaminé.

O pior eram aqueles que não paravam na estação e passavam já embalados… era coisa de doidos: estremecia a mesa, os copos abanavam, os talheres estremeciam e o meu pai, depois do comboio passar e ficar audível, dizia para a minha mãe:

- Mimi, passa-me o pão, por favor.

Um dia, um homem resolveu caminhar a pé pelo meio da via e prendeu-se-lhe a bota… sei que era uma bota porque veio parar ao meu terraço com o pé lá dentro.

Não me lembro de alguma noite que não tenha conseguido dormir… penso que então quando eu dormia eles estavam parados de propósito para não incomodarem.

O meu vizinho que morava do outro lado da ponte, o Mário Martins, uns anitos mais velho que eu, saíu da escola quando eu entrei e que anos mais tarde, trabalhando para a Valentim de Carvalho, viria a descobrir tudo ou quase tudo o que era cantor em Lisboa e arredores, a começar pelo Marco Paulo, dizia-me, apurando o ouvido e referindo-se ao comboio que lá vinha:

- Aposto que o número do comboio que lá vem é o… Ainda hoje estou para saber como é que ele acertava sempre, seria um truque ou já a manifestação da sua extraordinária sensibilidade para os sons.

Lembro-me que ele vivia no desejo nostálgico de ter um instrumento musical e se deixava encantar pelo piano que a minha mãe tinha lá em casa… inútil.

Recordo que o meu pai alugou esta casa por 400 mil réis, (hoje seriam 2 euros), o dobro do que a minha mãe pagava à cozinheira, e um quarto do que pagava à “criada de fora”, comidos e dormidos, já se vê. Sendo já dinheiro para a época não correspondia a uma moradia com aquelas características e devia traduzir a frustração do senhorio que nunca se deve ter entendido com o barulho dos comboios.

Devia de andar pelos meus 50 anos quando regressei de novo àquele local e àquela casa.

Bati à porta e disse à senhora que me atendeu:

- Nasci nesta casa há 50 anos, vivi nela os meus primeiros dez e nunca mais cá voltei, importa-se que dê uma vista de olhos?

- Faça favor, isto agora é um infantário, esteja à sua vontade.

Dei meia dúzia de passos, olhei ao meu redor, não reconheci nada, agradeci e vim embora…tinha-me esquecido de levar os meus olhos de criança!

Recentemente, viu-o de soslaio da janela do comboio, um pouco antes de chegar a Santa Apolónia. Pareceu-me estar em perfeita degradação. Podem destruí-lo por completo porque sem os meus olhos de menino não me serve para nada. Para o revisitar não tenho necessidade de lá voltar, nem sequer preciso dele, todos os seus mais pequeninos recantos e pormenores continuam indeléveis na minha memória.

Aos onze anos de idade mudámo-nos para a Av. Rio de Janeiro, para os lados do Campo Grande, ali juntinho ao Aeroporto e as visitas lá de casa diziam:

 - Não sei como vocês conseguem viver aqui com o barulho dos aviões a passarem por cima das vossas casas… e se eles era então barulhentos?


(Click no sempre lindo Mercado de Santarém)


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