HOJE É
DOMINGO
DOMINGO
Penso
que gostamos mais das terras onde nascemos quando, pelas circunstâncias da
vida, as temos que deixar.
Então, se for uma grande cidade com
aquela dinâmica própria das grandes cidades, esse sentimento, pela ausência, ainda
mais se acentua.
Furtamo-nos à poluição, ao trânsito, ao
receio por uma maior insegurança e o que permanece é a imagem colorida feita
saudade, um misto de sentimentos que mete ruas, praças, jardins, prédios… a
nossa vida feita aos retalhos, um pedacinho neste lugar, outro além, naquele
outro.
Memórias que nos aconchegam a alma e nos
devolvem, de regresso, ao nosso banco do jardim, à sombra daquela árvore, ao
passeio da frente com a paragem do eléctrico e, de repente, o polícia de turno
que passa no seu andar calmo, mãos atrás das costas, seguro, tão seguro e
confiante de si próprio que nos faz sentir aliados da autoridade.
Setenta anos de vida que não se somam em
parcelas iguais, longe disso, a maior parte passaram incógnitas, não me lembro
delas, não interessam, foram ram-ram, folhas de uma agenda que se rasgaram e
perderam… procuro-as na minha memória e não as encontro.
À primeira vista parece um enorme
desperdício, pensando melhor, foi mesmo um grande desperdício, o mesmo que
enche a vida de tantas pessoas que, como eu, não deram conta de que o relógio
estava a contar, hora a hora, minuto a minuto, todos exactamente com a mesma
duração, todos sem retorno.
Mas a minha cidade natal, essa, está lá
toda, guardada, encerrada na caixinha das minhas memórias. Os acrescentos não
têm nada a ver comigo nem com ela.
Lembram-se da inauguração da Expo/98? Das
filas intermináveis para os bilhetes de acesso, da euforia criada pelas
expectativas de algo verdadeiramente novo, moderno, arejado?
Nunca me senti tão orgulhoso da minha
cidade, comovi-me quando pela primeira vez entrei naquele espaço e me apeteceu correr
ao encontro dos responsáveis de tudo aquilo que via ao meu redor no enquadramento
mágico do estuário do Tejo, abraça-los e dizer-lhes obrigado.
Apeteceu-me recuar 50 anos e partir à
desfilada por toda a Lisboa a gritar:
-“Venham cá agora, venham ver o meu
bairro de operários, dos Armazéns de Vinho do Abel Pereira da Fonseca, da
Fábrica do Material de Guerra, do Sabão, dos Bilhetes de Eléctrico a dois
tostões destinados aos operários, do fim da linha do eléctrico no Poço do
Bispo.
Venham
cá agora, seus vaidosos, convencidos, do Bairro de Alvalade, da Baixa, do
Chiado…venham cá agora!”
Ah… se fosse possível misturar os tempos!
Eu tinha razões especiais:
- Quase sessenta anos antes, em 1939, tinha
nascido muito perto dali, na R. José do Patrocínio, num prédio de azulejos
verdes, dois pisos, terraço, varanda a toda a largura, muito bonito.
Encostaram-no, no entanto, à linha do comboio que ali passava sobre uma ponte
que ficava à altura da janela do primeiro andar e quando o “rápido” passava
todos os objectos lá em casa saltavam.
-
Como é que vocês podem viver aqui?
-
Por quê? – Ah, o comboio, nem damos por ele, ou por outra, damos mas, de
habituados, não ligamos.
O local da Expo/98 era,
então, no fim dos anos 80, um campo de contentores, matadouros e indústrias poluentes com a dimensão de 40 hectares. Um verdadeiro nojo e uma ameaça para o leito do estuário do Tejo com o qual confinava.
Aí nasceu a Exposição Internacional de Lisboa de 1998, com 11 milhões de visitantes foi considerada a melhor Exposição Mundial de sempre. Do passado, e para recordar o que tinha sido aquele espaço, lá ficou a Torre da Refinaria da Petrogal.
Do meu tempo, continuo a recordar com saudade, o fim da linha dos eléctricos, da Estação do Poço do Bispo onde o condutor se apeava para mudar o “troley”, inverter a marcha e regressar ao Terreiro do Paço. Ali próximo iria aparecer e crescer aquele que viria a ser, o maior depósito de lixos tóxicos, algo a que à data apenas se chamava, prosaicamente, de porcaria e onde, anos mais tarde, nasceria, quase como por artes mágicas, a Expo/98, o maior, mais belo e surpreendente projecto de recuperação urbanística da cidade de Lisboa.
Aí nasceu a Exposição Internacional de Lisboa de 1998, com 11 milhões de visitantes foi considerada a melhor Exposição Mundial de sempre. Do passado, e para recordar o que tinha sido aquele espaço, lá ficou a Torre da Refinaria da Petrogal.
Do meu tempo, continuo a recordar com saudade, o fim da linha dos eléctricos, da Estação do Poço do Bispo onde o condutor se apeava para mudar o “troley”, inverter a marcha e regressar ao Terreiro do Paço. Ali próximo iria aparecer e crescer aquele que viria a ser, o maior depósito de lixos tóxicos, algo a que à data apenas se chamava, prosaicamente, de porcaria e onde, anos mais tarde, nasceria, quase como por artes mágicas, a Expo/98, o maior, mais belo e surpreendente projecto de recuperação urbanística da cidade de Lisboa.
O Bairro de Marvila, era o local, por
excelência, das tabernas e carvoarias, das fábricas, dos operários e dos copos
de três, no tempo em que beber vinho era dar de comer a um milhão de
portugueses.
O meu pai era proprietário de duas dessas
tabernas e carvoarias, uma em
Vale Formoso e outra na Rua Direita de Marvila e ao Domingo,
quando ganhava o C.O.L (Clube Oriental de Lisboa), aumentava a euforia e o negócio
do vinho a copo à mesa e ao balcão.
Ainda se faziam sentir os efeitos da
guerra terminada em 45, das senhas de racionamento, das dificuldades, não para
mim que era filho de pai, então rico, usava calções, meias de soquete e chamava
de mamã à minha mãe.
Em 1937 o meu pai alugou uma moradia
quase no fim da Rua José do Patrocínio onde então, quando chovia muito, desaguava
tudo, cheia abaixo, vindo do Bairro Chinês, o mais antigo bairro de lata da
cidade de Lisboa e que foi varrido do mapa, para orgulho dele, pelo Dr. João
Soares, Presidente da Câmara.
A moradia, numa cota mais alta do que a rua, tinha um amplo terraço em toda a sua frente servida por uma dupla escadaria, a primeira até um portão de ferro pintado de verde e a outra até à rua.
O edifício era de dois pisos ligados por
uma escadaria interior muito bonita, em madeira exótica, que se abria em leque
ao chegar hall. A parede da frente do prédio era toda revestida a azulejos
verdes com uma varanda estreita a toda a largura e a encimá-lo bonitas figuras
de pedra.
Que fazia ali aquela moradia? Quem era o
seu dono? Por que razão a construíra às portas do Bairro Chinês, encostada a
uma ponte por onde o comboio ao passar fazia estremecer toda a casa?
Ou será que tudo nasceu, mais ou menos,
em simultâneo? O prédio, a ponte com o comboio a passar e o bairro de lata?
-
Ah… não sei como vocês podem viver aqui !
-
Porquê? Eu não dei por nada, nasci com o barulho do comboio, já o ouvia quando
ainda estava na barriga da minha mãe.
Depois, via-os passar do meu terraço:
eram todos pretos, à excepção de um que era branco, o “comboio de prata”, o
rápido que ia para o Norte, levava sempre muita pressa e de tão junto que
passava da minha casa até parecia que a ia atropelar.
Ainda hoje os ouço nas minhas
recordações no seu matraquear característico, especialmente quando iniciavam a
marcha na estação de Braço de Prata, ali próxima e vinham por ali fora a tomar
velocidade até começarem a abrandar para a próxima estação.
Pou-ca-te-rra…pou-ca-te-rra…pou-ca-te-rra…pou-ca-te-rra….ÚÙÙÙ… e lá vinha ele a resfolgar vomitando fumo pela chaminé.
O pior eram aqueles que não paravam na
estação e passavam já embalados… era coisa de doidos: estremecia a mesa, os
copos abanavam, os talheres estremeciam e o meu pai, depois do comboio passar e
ficar audível, dizia para a minha mãe:
- Mimi, passa-me o pão, por favor.
Um dia, um homem resolveu caminhar a pé
pelo meio da via e prendeu-se-lhe a bota… sei que era uma bota porque veio
parar ao meu terraço com o pé lá dentro.
Não me lembro de alguma noite que não
tenha conseguido dormir… penso que então quando eu dormia eles estavam parados de
propósito para não incomodarem.
O meu vizinho que morava do outro lado
da ponte, o Mário Martins, uns anitos mais velho que eu, saíu da escola quando
eu entrei e que anos mais tarde, trabalhando para a Valentim de Carvalho, viria
a descobrir tudo ou quase tudo o que era cantor em Lisboa e arredores, a começar
pelo Marco Paulo, dizia-me, apurando o ouvido e referindo-se ao comboio que lá
vinha:
- Aposto que o número do comboio que lá
vem é o… Ainda hoje estou para saber como é que ele acertava sempre, seria um
truque ou já a manifestação da sua extraordinária sensibilidade para os sons.
Lembro-me que ele vivia no desejo
nostálgico de ter um instrumento musical e se deixava encantar pelo piano que a
minha mãe tinha lá em casa… inútil.
Recordo que o meu pai alugou esta casa
por 400 mil réis, (hoje seriam 2 euros), o dobro do que a minha mãe pagava à
cozinheira, e um quarto do que pagava à “criada de fora”, comidos e dormidos,
já se vê. Sendo já dinheiro para a época não correspondia a uma moradia com
aquelas características e devia traduzir a frustração do senhorio que nunca se
deve ter entendido com o barulho dos comboios.
Devia de andar pelos meus 50 anos quando
regressei de novo àquele local e àquela casa.
Bati à porta e disse à senhora que me
atendeu:
- Nasci nesta casa há 50 anos, vivi nela
os meus primeiros dez e nunca mais cá voltei, importa-se que dê uma vista de
olhos?
- Faça favor, isto agora é um
infantário, esteja à sua vontade.
Dei meia dúzia de passos, olhei ao meu
redor, não reconheci nada, agradeci e vim embora…tinha-me esquecido de levar os
meus olhos de criança!
Recentemente, viu-o de soslaio da janela
do comboio, um pouco antes de chegar a Santa Apolónia. Pareceu-me estar em
perfeita degradação. Podem destruí-lo por completo porque sem os meus olhos de
menino não me serve para nada. Para o revisitar não tenho necessidade de lá
voltar, nem sequer preciso dele, todos os seus mais pequeninos recantos e
pormenores continuam indeléveis na minha memória.
Aos onze anos de idade mudámo-nos para a
Av. Rio de Janeiro, para os lados do Campo Grande, ali juntinho ao Aeroporto e
as visitas lá de casa diziam:
-
Não sei como vocês conseguem viver aqui
com o barulho dos aviões a passarem por cima das vossas casas… e se eles era
então barulhentos?
(Click no sempre lindo Mercado de Santarém)
(Click no sempre lindo Mercado de Santarém)
<< Home