(Na Minha Cidade de Santarém)
- Conclusão do texto do Domingo anterior -
O nosso “avô” Cro-Magnon tinha, como
grande caçador que era, os sentidos apurados e um grande poder de observação
sobre a natureza que o rodeava e saiu vitorioso na competição demográfica que
desenvolveu com o Homem de Neandertal que já se encontrava na Europa muitos
milénios antes de ele chegar. Movimentava-se melhor no terreno, com mais
facilidade, formava grupos mais numerosos e menos isolados que lhe permitiam
trocas com mais facilidade.
Para além disso, pelos esqueletos
encontrados, verificou-se que havia, entre os homens de Cro-Magnon, duas vezes
menos jovens mortos do que entre os Neandertais.
Estes, atendendo ao seu carácter mais
sedentário, não se davam bem com as grandes deslocações que passaram a ser obrigados
a fazer atrás das manadas de mamíferos cada vez mais escassas. Durante essas
longas viagens os laços familiares enfraqueciam-se a fecundidade diminuía e a
mortalidade das crianças aumentava.
Inevitavelmente, esta competição só
poderia ser favorável ao nosso “avô” Cro-Magnon que, de acordo com estudos
efectuados pelo demógrafo Ezra Zubrow,
da Universidade de Buffalo, em função de uma capacidade de sobrevivência
superior em 1 a
2 por cento, bastam cerca de 30 gerações, ou seja, apenas um milénio para a
substituição completa de um grupo.
Na realidade, os Neandertais resistiram
mais tempo, talvez 10.000 anos, mas o resultado estava traçado. Alguns puderam
ser absorvidos por cruzamentos e mestiçagens sucessivas, os outros, cada vez
menos numerosos, recuaram diante do invasor enfraquecendo-se progressivamente.
Os seus últimos vestígios, datados de há
28.000 anos, foram encontrados numa gruta em Gibraltar, seu último refúgio sem
que tivessem encontrado forças ou vontade para atravessarem a pequena distância
que, nesse tempo, os separava do continente Africano de onde eram oriundos e do
qual tinham saído centenas de milhar de anos atrás.
O
nosso “avô” Cro-Magnon era um artista genial dominando perfeitamente as
técnicas de pintura, perspectiva, falsa perspectiva, relevo e da tradução do
movimento.
O testemunho artístico que nos deixou,
por exemplo, nas grutas de Lascaux, em França, consideradas a Capela Sistina da
Pré-História, quando foram visitadas por Pablo Picasso, mereceram-lhe o
seguinte comentário: “Nós não inventámos nada... está aqui
tudo!”
Esta forma de arte denominada Pinturas Rupestres
(pinturas ou gravuras na pedra) era executada, numa explicação mais moderna,
por xamãs, espécie de feiticeiros, que penetrariam nas grutas e em estado de
transe pintariam imagens das suas visões, uma espécie de “magia propiciatória”
para o sucesso das caçadas.
A arte expressa nestas figuras está ao
serviço de um mito, é todo o conhecimento que têm do mundo e que eles se
esforçam por inscrever na rocha, conhecimento, é certo, mas também as dúvidas,
os temores, as interrogações.
Com quem procuravam eles comunicar, que
harmonia pretendiam eles estabelecer ou restabelecer indo, assim, ao encontro
do sobrenatural e com que fim?
Mas essas magias não teriam sido
suficientes para o sucesso das caçadas se o nosso “avô” não se tivesse ele
apoiado em armas muito eficazes tais como o “propulsor” que decuplica a
potência das armas de arremesso e as próprias lanças cujas pontas de pedra ou
de osso eram fixadas solidamente à extremidade de paus de madeira rija convertendo-os,
assim, em dardos e lanças temíveis.
O homem de Cro-Magnon, nosso “avô”,
desenvolveu uma verdadeira cultura que vai muito para lá da tímida tomada de
consciência manifestada pelo homem de Neandertal.
O enterro dos mortos obedecia a
cerimoniais sistemáticos que variavam segundo as regiões mas que têm sempre
presente a preocupação de honrar o defunto e assegurar-lhe o melhor conforto
possível no além.
As sepulturas estão cheias de objectos e
de jóias de osso e marfim e os corpos vestidos com roupa ornamentada com
pérolas e polvilhados de ocre com armas dispostas ao lado como ornamentos.
As jóias e os adornos fabricados a
partir de dentes de carnívoro, vértebras de peixe, conchas, pulseiras
cinzeladas em marfim, figuras humanas ou de animais talhadas com muito realismo
em chifres de cervídeo, com a preocupação de criar beleza, mas também figuras
ambíguas cuja interpretação ainda hoje nos escapa.
Outras peças são mais explícitas como
aquelas estatuetas esculpidas em marfim ou pedra representando mulheres de
silhueta de grande ventre e seios a que os arqueólogos denominaram de Vénus,
muito comuns por toda a Europa até à Sibéria, e que são símbolos de
fertilidade, uma deusa mãe protectora ou talvez a imagem que o Cro-Magnon fazia
da antepassada do género humano, a Eva universal.
O estilo de vida característico do nosso
avô, não sendo nómada, obrigava-o no entanto, a nomadizar-se ao longo das
estações do ano apropriando-se de lugares privilegiados aos quais regressava
periodicamente.
Desta forma, há grupos que acabam por se
encontrar frequentemente, o que os leva a comunicar, a estabelecer relações
regulares, a colaborar de forma pontual e a praticarem trocas materiais e
culturais.
Mas a segunda Grande Revolução estava
para acontecer e o nosso “avô” Cro-Magnon iria ser, também ele, vítima das
alterações climáticas na Europa com o princípio do fim da era glacial, o
aumento das temperaturas e dos índices pluviométricos, o aparecimento em força
das florestas, o desaparecimento progressivo das savanas, das tundras e das
manadas de animais de grande porte.
De futuro, o homem iria domesticar as
ervas e alguns animais selvagens pondo ambos ao seu serviço e, ao fazê-lo,
passaria a ser escravo da terra e do trabalho monótono e repetitivo que ela
implica.
Daí, resultariam excedentes de alimento que mais
cedo ou mais tarde, iriam ser apropriados por uns em prejuízo de outros e a terra
que produzia esses alimentos deixaria de estar disponível e seria, também ela,
apropriada por uns, poucos, os “senhores” da terra e a multidão dos restantes,
seus servos.
A sociedade organizou-se,
hierarquizou-se, sofisticou-se.
Os xamãs tornaram-se sacerdotes e as
crenças e mitos evoluíram para religiões, primeiro de uma multiplicidade de
deuses e mais tarde, para simplificar, mas só aparentemente, de um só.
Estavam criados os ricos e os pobres, os
fracos e os poderosos, não em função das suas capacidades físicas, destreza ou
coragem, como no tempo do “avô” Cro-Magnon, mas principalmente, em função do
nascimento e do “ter” ou “não ter”.
Finalmente, apareceram as cidades e
delas brotaram as civilizações lideradas pelos grandes chefes políticos e militares
à frente dos seus enormes exércitos. As comunidades de carácter matriarcal
deram lugar, pela mudança de papel desempenhado pelo homem de caçador/colector
em soldado guerreiro, em sociedades patriarcais e machistas.
O nosso “avô” Cro-Magnon com a sua
destreza, força e coragem e o seu apurado sentido de observação e instinto de
caçador foi substituído por outro, com outras capacidades baseadas na
abstracção e racionalização.
A prática da agricultura e o consequente
sedentarismo, depois da descoberta da técnica que permitiu o domínio e o
controle do fogo que esteve na origem da primeira Grande Revolução da
humanidade, deu lugar à segunda Grande Revolução.
A primeira, fez-nos nascer como Homo
Sapiens, a segunda projectou-nos para um destino que a nós próprios, que
vivemos os dias de hoje, não podemos, com algum realismo, deixar de temer.
Creio que temos hoje mais razões para
nos atormentarmos e temermos o futuro do que tinha o nosso “avô” Cro-Magnon…
mas isto é só uma desconfiança minha…
…e se amanhã nos levantássemos de
madrugada, antes do nascer do sol, e fossemos fazer uma pescaria ao rio?...
Ou então, como diz a Rita Lee: “Se Deus qui ser ainda volto a ser índio, viver pelado pintado
de verde num eterno Domingo…”
Bom Domingo para todos.
VIS A VIS: À Esquerda, o Homem de Neandertal, à Direita, o nosso "avô" Cro- Magnon
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