Guerra Colonial
As guerras têm uma componente humana que
não interessa à análise política ou histórica e que na sua quase totalidade se
esquece com o desaparecimento dos seus protagonistas ou descendentes quando,
por vezes, alguns deles, ainda recordam as histórias da guerra que o pai ou avô
contavam.
Esta componente humana determina que
cada guerra se desmultiplique em tantas guerras quantos aqueles que nela
participaram porque ela constitui uma experiência única, diferente em função da
sensibilidade de cada um que a vive ou melhor, lhe sobrevive.
Fonte inspiradora por excelência de
romances, o palco da guerra tem todos os condimentos para seduzir o leitor que
procura num livro, emoção, aventura e sentimentos sejam eles de heroicidade,
covardia ou de simples espírito de sobrevivência.
Na manhã do dia 9 de Novembro de 1962 a marginal de Luanda
regurgitava com as centenas de militares, mais de mil, que tinham desembarcado
naquele dia do Paquete Vera Cruz.
Três Batalhões, para além de Companhias
Independentes, desciam pelo portaló do convés do navio, sendo certo que as
expressões dos soldados demonstravam mais alívio pelo fim da viagem do que medo
daqui lo que os esperava.
Eram poucos aqueles que antes da
mobilização tinham saído da sua aldeia natal num Portugal acentuadamente rural
e em grande parte analfabeto.
Mas a juventude é uma fonte de vida e de
esperança e quem ouvisse o cruzar de tantos gritos e falatório perguntaria,
senão soubesse, se eles iam para a guerra ou para uma festa… ou talvez fosse
apenas uma maneira de se animarem uns aos outros para não pensarem no destino
que os esperava e que eles também não sabiam bem qual era.
Para já, iria ser o Campo do Grafanil,
nos subúrbios de Luanda, imenso quartel ao ar livre onde as camionetas GMC e Berliettes,
estas construídas na Fábrica do Tramagal, ali para os lados de Abrantes,
levariam as Unidades ao seu destino sem que antes, porém, nessa noite,
exércitos de mosqui tos plenos de
energia própria da época das chuvas, não partissem ao assalto dos corpos, ávidos
de sangue fresco acabado de desembarcar, num primeiro teste de adaptação a esse
misterioso e envolvente continente Africano.
Nós, os Alferes, e aqui ficam os seus nomes: Rocha – já falecido – Ataíde,
emigrado para o Canadá de há muitos anos, Frederico Melo , Paula de
Matos e Dória Nóbrega, o médico da Companhia. Nessa primeira noite da chegada a
Luanda, o nosso Capitão Machado Monteiro que nos foi esperar ao barco, convidou
os alferes para jantar no Grande Hotel Universo.
Este Capitão não pertencia ao Quadro
Permanente do Exército. Dada a escassez de oficiais do Quadro ao nível de capitães
eram convidados oficias milicianos a tirarem o curso de Capitães e seguirem
posteriormente a carreira militar.
Deixem-me recordar este senhor que
tivemos a satisfação de o rever, no almoço anual da nossa Companhia, já este ano, nos seus desempenados 81 anos.
Ficou para a história da “nossa guerra”
como o “120” ,
mas eu explico:
-
Na guerra subversiva o inimigo tinha as suas preferências e alvejava,
naturalmente, os militares mais graduados. Por isso, os camuflados eram iguais
para todos sem nada que os distinguisse e aqueles militares que usavam óculos
tiravam-nos durante as operações para não serem confundidos com oficiais que
terão gasto a vista a estudar...
Por tudo isto, o nosso capitão impunha
aos soldados que, no mato, em operações, ele não era capitão, era o …120!
Apresentou-se ao jantar, no Hotel, numa
figura que antecipava aquela que viria a ser a do Rambo – admito que ele se
tenha inspirado nele - com a faca de
mato e granadas penduradas à cintura e um desembaraço que nos impressionou.
Durante a viagem para o Úcua, onde iríamos
ficar nove ou dez meses, dormitava, ou fingia, ao lado do condutor do jeep numa
atitude misto de confiança e displicência própria dos heróis do Western, tipo
John Wayne.
Quando chegámos decidiu “brindar-nos”
com uma volta de reconhecimento à povoação mas fê-lo de forma tão desastrada
que senão o tivéssemos agarrado por um braço teria caído do jeep.
Era um homem muito medroso e só saía para
o mato na companhia do Ataíde, de todos, aquele que a ele lhe oferecia mais “garantias”
de protecção. Pretendendo alardear uma coragem e valentia que não possuía caia
facilmente no ridículo porque os soldados podiam ser analfabetos mas não eram
parvos.
Tivemos sorte, apesar de tudo, porque
dos três Batalhões que viajaram connosco o nosso terá ficado no local menos
perigoso pois em quase um ano que ali estivemos não se registou a explosão de
uma única mina nas estradas da nossa área de intervenção e as minas, para além
das emboscadas, eram a grande causa de mortes e principalmente de estropiados.
“Fugimos” das minas mas não evitámos uma
emboscada minuciosamente preparada pelo inimigo a uma coluna de uma outra
Companhia do nosso batalhão que nos era vizinha.
O
meu amigo “Setúbal” – grande número dos soldados eram conhecidos pelo nome da
terra de onde eram naturais – pagou o preço supremo quando, sentado atrás da
sua metralhadora Breda, no Unimog, caiu na zona de morte da emboscada que lhes
foi montada e foi atingido por um tiro na cabeça.
Foi o melhor soldado da recruta que dei
em Évora, no Regimento de Infantaria 16, ainda em 1961.
Era casado, tinha a 4ª Classe - era quase licenciatura nessa época - uma filha e trabalhava como empregado de mesa.
Eu só lhe dava autorização para responder às perguntas quando nenhum dos seus camaradas
sabia a resposta.
Era um primor de simpatia, educação e
inteligência mas, infelizmente, quando foram divididos pelas três Companhias do
Batalhão, ficou na 389 quando a mim me calhou a 388.
Por esta razão fiquei no Úcua e ele foi
parar ao Pango, cerca de 50 a
60 km
para leste.
Creio que foi em Março, eu seguia de
jeep do Úcua para o Pango e já relativamente próximo do destino apercebi-me que
na estrada, mais à frente, algo se estava a passar.
Um Unimog, com uma metralhadora Breda para
dar protecção a um grupo de trabalhadores que reparavam a estrada, tinha caído
numa emboscada montada numa curva e o inimigo, julgando que o meu jeep que se
aproximava em sentido contrário, fazia parte de um reforço de tropas chamado
pela rádio para ajudar os camaradas em apuros, fugiram em debandada deixando
para trás um cadáver e uma pistola metralhadora.
O meu amigo “Setúbal” e mais três
colegas estavam mortos e mais dois desapareceram para sempre. Uma bala
disparada a curta distância acertou-lhe a meio da testa…felizmente não sofreu.
Os restantes foram igualmente mortos à
queima-roupa com excepção de um que sobreviveu apenas porque se atirou da
viatura e fingiu estar morto, deitado de barriga para baixo, no meio do capim.
Essa simulação valeu-lhe a vida e um
louvor.
Nem sempre os heróis se fazem de coragem
e valentia. Neste caso, a astúcia e o sangue frio… e o meu jeep que apareceu
providencialmente foram decisivos para a sua sobrevivência.
Com uma perna partida em consequência da
queda do Unimog conseguiu manter-se imóvel não obstante as dores que sentia que
não eram, no entanto, tão fortes como a vontade de se manter vivo.
A chegada inesperada do meu jeep como
factor surpresa pôs termo à situação em que para ele cada segundo parecia uma
eternidade.
A bala que atingiu o “Setúbal” em cheio,
na cabeça, perfurou-me a mim a alma. A minha tensão arterial baixou para 4/8 e
as noites seguintes passei-as junto dos sentinelas, em silêncio, como se cada
um deles fosse o meu amigo de quem não me queria separar.
Na verdade, não conseguia dormir, todos
nós tínhamos morrido um pouco com os nossos camaradas falecidos.
Este texto é dedicado ao “Setúbal”, um
jovem cheio de qualidades, decerto um cidadão exemplar, mais um que aquela
guerra privou da vida a que tinha direito subtraindo-o ao seu país, à sua família
e a todos nós.
Não vale a pena perder tempo a odiar os
culpados tantos são e continuarão a ser os “senhores das guerras” em todo o
mundo. O nosso, caiu de uma cadeira e morreu uns tempos depois…
Prefiro recordar com saudade e amizade o
meu amigo “Setúbal” de quem nunca me esqueci ao longo de cinquenta anos!
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