quarta-feira, setembro 12, 2012


GABRIELA
CRAVO
E
CANELA

Episódio Nº 190

Como haviam chegado a Ilhéus nem Deus sabe. Ali esperavam obter o suficiente para as passagens de navio até à Baía onde podiam associar-se a circo mais próspero. Em Itabuna quase haviam mendigado. O dinheiro para o trem obtiveram-no as três filhas, as duas casadas e a solteira, ainda menor de idade, dançando no cabaré.

Tuísca foi a providência divina: levou o director humilde ao delegado (para obter a isenção do imposto cobrado pela polícia); a seu João Fulgêncio (impressão do programa a crédito; a seu Cortes, do Cine Vitória (empréstimo sem cobrança de aluguel, das velhas cadeiras encostadas desde a remodelação do cinema); ao mal afamado botequim Cachaça Barata, na rua do Sapo (contratar sob seu conselho, mata cachorros entre aqueles malandros), e assumira o papel de criado na peça A Filha do Palhaço (o artista a representá-lo, antes abandonara a carreira e salário, em Itabuna, por um balcão de armazém).

Ficou besta quando mandou eu repetir os que dizeres e repeti tudo direitinho. E isso que não me viu dançar…

Gabriela batia palmas com as mãos ao ouvi-lo contar as peripécias do dia, as notícias do mundo mágico do circo.

Tuísca tu ainda vai ser um artista de verdade. Amanhã estou lá, na primeira fila. Vou convidar dona Arminda – pensava. – E vou falar com seu Nacib pra ele ir também. Ele que bem podia ir, deixar o bar um pouquinho. Pra te ver… Vou bater tanta palma de inchar as mãos.

Mamãe vai ver também. Entra de graça. Pode ser que ela vendo deixe eu ir com eles. Só que esse é um circo tão pobre…Andam ruim de dinheiro. Fazem comida lá mesmo para não gastar com hotel.

Gabriela tinha ideias definitivas sobre circos:

 - Tudo que é circo é bom. Pode tá caindo aos pedaços, é bom. Não há coisa melhor que função de circo. Gosto até de mais. Amanhã tou lá, batendo palma. E vou levar seu Nacib, pode contar.

Naquela noite Nacib chegou muito tarde, o movimento do bar entrara pela madrugada. Em torno do poeta Argileu Palmeira formara-se roda grande, após a sessão dos cinemas.

O eminente vate juntara em casa do Capitão, fizera mais algumas visitas, vendera mais alguns exemplares dos Topázios, estava encantado com Ilhéus. O circo tão miserável, avistado no porto, não era concorrente. A conversa no bar prolongara-se noite adentro, o vate revelava-se valente bebedor, apelidando cachaça de «néctar dos deuses» e de «absinto caboclo». Ari Santos recitara-lhe seus versos, merecera os elogios do eminente:

 - Inspiração profunda. Forma correcta.

Instado, também Josué declamou. Poemas modernistas, para escandalizar o visitante. Não escandalizou:

 - Belíssimo. Não rezo pela cartilha futurista mas aplaudo o talento esteja onde estiver. Que vigor, que imagens!


Josué entregava-se: Argileu, afinal de contas, era um nome conhecido. Tinha bagagem respeitável, livros consagrados. Agradeceu-lhe a opinião, pediu licença para dizer uma das suas últimas produções. No correr da velada, por mais de uma vez, Glória, impaciente, surgira em sua janela a espiar o bar.

(A Sónia Braga tinha 25 anos quando "vestiu" o papel de Gabriela no romance de Jorge Amado. A artista Juliana Paes, que a substitui agora na telenovela que começou ontem na SIC, tem 33 e uma beleza sofisticada, trabalhada, a que falta o brilho, a pureza, a rebeldia, o ar selvagem da cabocla do sertão brasileiro encarnado por Sónia Braga. O episódio da estreia foi um êxito, arrasou a concorrência,  a qualidade, indiscutível. Ainda bem por Jorge Amado, ainda bem por quem não conhecia o romance. Eu não a verei, a minha ligação à Gabriela de há 35 anos atrás não me permite, seria traição... dá para compreender?)

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