A bazuca salvadora |
A Minha Última
Operação na Guerra
Colonial de Angola
Operação na Guerra
Colonial de Angola
(Em Novembro de 1963)
Era minha intenção não falar da experiência
que foi a minha última operação no Norte de Angola antes de seguirmos para o
Leste cumprir, felizmente em paz, o resto da comissão mas se o fizesse omitiria
aquele que foi, sem dúvida, o meu único momento de guerra a sério de toda a
minha comissão.
Quando, por exaustão, as tropas eram
retiradas da zona de guerra, mais ou menos ao fim de um ano, e transferidas
para outras regiões, era comum fazerem uma pausa em Luanda e aí serem aproveitadas
pelos Altos Comandos para uma última Operação em zona de guerra, espécie de
cereja em cima do bolo ou do preço a pagar pela passagem para uma zona
pacífica. A essas tropas chamavam-lhes de Intervenção.
Era uma oportunidade para as chefias militares,
sedeadas no ar condicionado de Luanda, fazerem a sua própria guerra, concebendo
e realizando Operações que eram desencadeadas em locais escolhidos por serem
considerados importantes do ponto de vista estratégico e envolviam grande número
de efectivos.
Nessas Operações, oficiais superiores,
Majores ou Tenente-Coronéis, dentro de pequenas avionetas ao lado dos pilotos,
sobrevoavam a zona em que as tropas operavam tentando fazer o acompanhamento o
que não era fácil porque cá em baixo era um ininterrupto tapete verde.
Para terem uma ideia da movimentação dos
grupos de combate no terreno e da sua localização davam, então, ordens pela
rádio para que fossem lançadas granadas de fumo, o que não era do agrado das
tropas que operavam no terreno porque tinham de interromper a marcha e correrem
o risco de que esses sinais fossem também notados pelos guerrilheiros.
Percebíamos, no entanto, que essa era a
maneira desses oficiais participarem mais directamente na guerra sem o esforço
e risco inerentes e ao mesmo tempo poderem fiscalizar o cumprimento dos
itinerários fixados nas Cartas de Operações… ou pelo menos tentarem.
Era este o contexto em que fiz a minha
última Operação na Guerra Colonial e que só por muita sorte não foi,
igualmente, a última coisa que fiz na minha vida.
Mas se hoje a posso relatar porque lhe
sobrevivi a minha vontade era, no entanto, esquecê-la, ou melhor ainda, que ela
nunca tivesse acontecido.
Deixem-me, por isso, fazer previamente
uma reflexão:
Afirmei no início do relato destas
memórias que não houve uma guerra mas tantas quantas os que nela participaram.
O cunho e a marca da guerra estão não só
nos factos, no que acontece enquanto vivemos essa experiência traumática mas,
principalmente, na forma como cada um sente e reage interiormente a tudo isso.
Todos fomos criados e educados num
quadro de valores que respeita a vida humana mas quando nos põem uma arma nas
mãos, vestem um camuflado e nos mandam para a guerra, imediatamente
interiorizamos que vamos morrer e matar e por isso, quando passadas poucas
semanas de termos chegado ao Norte de Angola, ao Úcua, um Unimog foi emboscado
pelo inimigo e quase todos os seus ocupantes, meus camaradas de Batalhão, foram
mortos, incluindo o meu amigo Setúbal, o que eu senti, fundamentalmente, é que
a sentença da guerra estava-se a cumprir entre aqueles que eram os seus
protagonistas.
No fundo, na morte daqueles soldados
havia qualquer coisa de terrivelmente óbvio: os soldados foram concebidos para
morrer, umas vezes uns, do lado de cá, outras vezes outros, do lado de lá.
Se alguma coisa faz sentido numa guerra
é a morte dos soldados que nela participam e por isso a morte de um soldado não
envergonha o outro soldado que o mata; envergonha mais se o não matar e ainda
mais se se deixar matar. Os superiores não lhe perdoarão ter contribuído para
aumentar o número das baixas em combate…
Assim, a minha reacção não foi contra os
soldados nossos inimigos mas para os promotores daquela guerra que nos puseram
uma arma na mão, vestiram-nos o camuflado e tiveram o desplante de nos dizerem que
íamos defender o solo “pátrio”, sem esclarecerem que nele se camuflavam os
interesses dos senhores do café, do algodão, do sisal, dos diamantes, do
açúcar, (ainda não tinha aparecido em cena o petróleo), a maior parte
residentes em Portugal com breves visitas a África o tempo necessário para gozarem
de umas bem organizadas caçadas.
Mas regressemos à minha última Operação.
Desenrolou-se tendo como base e ponto de partida a fazenda Maria Fernanda, no
Coração dos Dembos, zona de muitos ataques “terroristas” bem no centro do norte
de Angola e nela participaram várias Companhias que saindo em simultâneo do
mesmo ponto percorriam itinerários diferentes com objectivos de “limpeza”,
perfeitamente delirantes tendo em conta a riqueza da vegetação o desconhecimento
e o pouco à vontade que possuíamos quando comparados com o das populações que
faziam dela a sua casa.
Fomos largados de viaturas naquilo a que
eles chamavam picada e que há muito já tinha deixado de o ser (as picadas se não
utilizadas, rapidamente são invadidas pelo capim e a restante vegetação
apodera-se delas) e deveríamos seguir para Norte até encontrar uma outra picada
que, de certeza, estaria nas mesmas condições e onde as viaturas nos reconduziriam
de regresso à fazenda Maria João.
Com o meu pelotão ia também um outro que
era comandado por um Alferes licenciado em medicina mas que não tendo ainda
feito o estágio, cumpria a comissão como oficial de infantaria e pertencia à
guarnição militar que estava instalada na própria fazenda Maria Fernanda.
O seu estado de espírito não podia ser
pior. Estava deprimido e era completa a saturação e o desinteresse que
manifestava por tudo quanto o rodeava.
Antes de partirmos acercou-se de mim e
disse-me:
-
“Não quero saber disto para nada, você comanda e eu vou ser apenas mais um
soldado”… Não mais voltei a dar pela sua presença.
A operação decorreu num vale profundo de
encostas bem acentuadas e que se prolongava na sentido sul/norte.
As encostas do vale estavam desmatadas
até uma certa altura para aproveitarem o terreno para a agricultura na parte
mais baixa e fértil. Era uma agricultura de subsistência das populações que se
tinham subtraído ao controle das autoridades portuguesas e viviam refugiadas no
mato juntamente com os guerrilheiros que tinham a obrigação de as protegerem.
Começamos a deslocação para norte, pela
encosta do lado esquerdo do vale, na orla do terreno que estava mais limpo e
encobertos pela vegetação da floresta.
Era-nos, assim, relativamente fácil,
observar o que se passava à nossa direita, mais abaixo, sem que o contrário
fosse igualmente possível.
Caminhávamos uns atrás dos outros numa
fila que se prolongava por dezenas de metros e durante algum tempo nada
aconteceu.
De repente, ouvi um tiro, depois mais
tiros, um alvoroço, alguns soldados descem a correr a encosta, atravessam o
vale e perseguem pessoas que fogem subindo a encosta do outro lado.
Regressam passado pouco tempo os que
tinham saído em perseguição, a calma restabelece-se progressivamente… o drama
estava consumado.
Uma jovem tinha sido morta por uma bala
que disparada de muito longe entrara pelas costas e atravessara-lhe o coração.
Um outro soldado cortou-lhe um dedo para trazer para casa como troféu de guerra
e eu… tive uma enorme vontade de fugir dali, desaparecer… eu que era o
comandante daquela tropa e nem sequer podia recriminar o soldado que matou a
jovem porque ele apenas cumprira as instruções do Quartel General de matar tudo
o que mexesse, a tal “limpeza” a que já me referi.
Não conheci bem este soldado no sentido
de que não tive com ele uma grande convivência. Era da minha Companhia mas do
Grupo de Combate do meu colega Ataíde. Tinha um aspecto possante, bem
constituído fisicamente, chamavam-lhe, talvez por isso, “o Boi”. Proveniente do
nosso meio rural, como a grande maioria deles teria, no máximo, a
instrução primária.
Dizer-lhe que a utilização de uma arma, mesmo
numa situação de guerra, é sempre da responsabilidade de quem a utiliza, faria
algum sentido para ele?
Manifestar-lhe o meu desagrado não seria
estabelecer a confusão na sua cabeça?
Perguntar-lhe se ele gostaria que fossem
à sua aldeia e lhe matassem a irmã ou a namorada quando ela estivesse a
trabalhar no campo, era justo?
Do outro soldado, do que cortou o dedo
do cadáver da jovem para recordação, não procurei saber na altura quem era,
sentia demasiada vergonha, por mim e por ele.
Quarenta e quatro anos mais tarde confessou-me
o “feito” e pediu-me desculpa: “…eu era um garoto, meu Alferes…justificou-se”.
Mas não seríamos, então, todos nós uns garotos?
Foram, para mim, momentos de pânico e
desorientação, não queria estar ali nem mais um minuto e por isso dei ordem para que continuássemos o nosso trajecto o mais rapidamente
possível.
Atacar civis, pessoas indefesas, não era
guerra nenhuma, era um morticínio.
Cansado daquelas marchas, do ar saturado
de humidade que não nos deixava respirar, do peso da espingarda, cartucheiras,
bornal, capa de borracha, cantil, que depressa esvaziava… quando à noite me
deixava cair o que me esperava era sempre um sono profundo de cansaço extremo.
Por almofada tinha o meu bornal, por lençol a capa de borracha.
Sempre? ... Não, naquela noite quase não
preguei olho, os gritos de dor pela morte da jovem ecoavam por todo aquele
vale.
Eram gritos lancinantes, doridos,
acusatórios e o silêncio que se lhes seguia parecia total, como se os bichos da
floresta tivessem decidido, também eles, respeitar calados a morte da jovem,
habitante que ali pertencia.
(continua)
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