Na vida, as recordações somam-se aos
anos e na manhã deste mês de Outubro, à mesa do meu Café, lembrei-me da vizinha
do 5º Dto.
Num
dia, igual a tantos outros, quando saía para tomar o meu café matinal com a
meia torradinha barrada em azeite de um lagar próximo da minha aldeia, lá
estava, colado ao vidro da porta do prédio, aquele papel das Agências Funerárias
com a cruz negra, bem visível, a anunciar a morte de um dos moradores.
Era a minha vizinha do 5º Dto com quem
me cruzava frequentemente quando ela levava pela trela, para o passeio
higiénico, a cadelinha que mais parecia uma bolinha de carne em cima de quatro
patinhas. Diga-se, por ser verdade, ela levava-a para todo o lado, eram
inseparáveis, nunca vi uma sem a outra.
- «Os meus sentimentos…» disse eu ao
viúvo na primeira oportunidade. «É a vida…» acrescentei sem jeito nem
imaginação.
- «Obrigado, meu vizinho, felizmente foi
tão rápido que nem chegámos a saber do que morreu… fechou os olhos simplesmente….»
– disse ele.
Era assim a minha vizinha, despachada a
viver, despachada a morrer, um dia cheia de vida no outro sem ela. Às vezes,
encontrava-a no Café que ficava junto da mercearia da nossa rua e que em
tempos fora dela. Meia sentada na cadeira como se estivesse sempre preste a
levantar-se, de partida, pouco habituada às pausas para descanso, com a
cadelinha deitada aos seus pés como se fosse um acrescento seu.
Não era pessoa para grandes conversas,
quando falava era em monólogos, bem sonantes, sem cuidar de quem a escutava,
eram desabafos que não aceitavam contraditório porque quem sabia da vida era
ela, mulher de trabalho que tinha criado e educado uma filha e servido não sei
quantos senhores e senhoras por esse mundo fora: País de Gales, Londres, EUA,
trabalhando a sério, no duro, cumprindo ordens, satisfazendo e aturando
caprichos de gente rica, em suma, dobrando a espinha, e a alma. - «…Não era
como agora em que os jovens só querem é gozar».
Talvez por isso, aos oitenta anos, o
orgulho de uma vida de trabalho não chegou para lhe adoçar a velhice tantas são
as palavras de crítica azeda com que se refere ao presente.
A minha vizinha do 5º Dtº morreu em paz,
tudo o que em consciência devia ter feito na vida ela fez e por isso, quando
chegou a hora, nem um ai ou um simples adeus, simplesmente fechou os olhos, a
missão estava cumprida, tinha chegado ao fim.
Vi o meu vizinho uns dias mais tarde com
a cadelinha pela trela e os meus olhos abriram-se de espanto. O animal estava
pela metade.
- «Então, vizinho, que aconteceu à cadelinha
que nem parece a mesma?»
- «Ia morrendo de desgosto, meu vizinho, durante
uma semana recusou-se a ingerir fosse o que fosse para além de água. Tive que a
levar ao veterinário… agora já está melhorzinha.»
Não fora o apoio do viúvo em carinho e a
intervenção do médico veterinário e a “Princesa”, não teria sobrevivido à sua
dona, tal a dedicação que lhe devotava.
Com toda a sinceridade, não nutro pelos
animais domésticos o mesmo “respeito” e “admiração” que sinto pelos animais
selvagens, por questões de origem, proveniência…
Uns, são o resultado do processo
evolutivo: estão cá porque mereceram cá estar, são vencedores, campeões,
enfrentaram os desafios da natureza e resistiram, adaptaram-se, as suas
estratégias de sobrevivência mostraram-se ganhadoras, muitos deles não sabemos
até quando… também por nossa causa.
Os outros… bem, os outros, são o
resultado de negócios vantajosos recíprocos, digamos assim. O homem precisou deles,
serviram as nossas necessidades, mais tarde os nossos caprichos,
por isso, são da nossa responsabilidade, não da responsabilidade da natureza.
Mas aqui abro duas excepções:
-
A primeira, para o cavalo. Há 5.500 anos entrou na nossa vida e revolucionou-a
por completo tornando o mundo mais pequeno. Para o bem e para o mal
aproximou-nos uns dos outros, a história ganhou outra dinâmica, ele foi o avião
desses tempos no que respeita a encurtar distâncias, sem ele o nosso percurso teria sido outro.
Há mais de 30.000 anos as suas imagens preencheram as paredes das grutas no tempo do Homem
do Paleolítico, no Sul da Europa, fazendo parte do seu imaginário. As suas
formas esbeltas, harmoniosas, as crinas ondulando ao vento em galopes
libertadores seduziram os nossos antepassados.
É
certo que também o caçavam para a alimentação mas o grau de participação na dieta
dos nossos antepassados não justificava tantas reproduções de que foi alvo
pelos artistas de então o que significa que já por essa época gostávamos mais
de os ver do que de os comer…
-
A segunda excepção é recente, conheci-a agora. É a “Princesa”, actual herdeira
de um lobo que há mais de 40.000 anos escolheu um acampamento humano para
futuro da sua alcateia de tal forma que o percurso de uma linhagem de lobos se fundiu com os humanos numa relação de amor, cumplicidade, companheirismo, em que a cadelinha do 5º andar, que
tive a sorte de conhecer, se dispôs a morrer incapaz de suportar a dor da
saudade da sua amiga inseparável.
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