domingo, outubro 14, 2012

Das muralhas de Santarém. O Rio Tejo e a planície ribatejana .
HOJE
É DOMINGO
(Na minha cidade de Santarém)












PAIXÃO NO FIM-DE-SEMANA

Meteu a chave à porta do seu pequeno apartamento e entrou com a felicidade estampada no rosto. Foi acendendo luzes, todas quantas encontrou. Estava radiante, olhava à sua volta: os móveis, os quadros na parede, a jarra e o centro de mesa, tudo lhe parecia novo e belo, via tudo como se fosse a primeira vez. Apeteceu-lhe abrir os braços e dançar. Descerrou a persiana, abriu a janela, inspirou o ar como se tivesse ganho um novo alento para vida, o amor brilhava-lhe nos olhos.

Era uma tarde de sábado e ela demorou-se um pouco mais na sua loja de computadores. A conversa continuou cá fora, no passeio. Num assomo de coragem ele tinha-a convidado para almoçar no Domingo. Ela olhou-o, com aqueles olhos que o fascinavam e esboçou um sorriso doce e um olhar terno.

 - Porque não? - Respondeu-lhe, e o sorriso continuava a bailar-lhe nos lábios, desafiante e prometedor. Combinou tudo, já nervoso, as pernas pareciam tremer e as palavras saíam-lhe apressadas, sem ritmo, sem fluência, e ela continuava a sorrir… um sorriso de aceitação. Despediu-se com um rápido aperto de mão.

Já tinha vinte e sete anos e sempre fora menino de mamã que ficara viúva muito cedo e concentrara nele, filho único, todo o amor, toda a posse de uma mãe que se agarra ao filho como algo que é seu, tudo o que tem e não quer perder. Embora nova, não mais quis homens na sua vida, chegara ter visto partir um, o pai do seu filho.

Não sem custo, conseguira o consentimento da mãe para alugar aquele pequeno apartamento beneficiando da proximidade, no prédio quase vizinho, em frente, do outro lado da rua. A mãe tratava de tudo só que aquele espaço era mais dele. No fundo, sentia a necessidade de se emancipar, de ganhar vida própria mas percebia, também, que com os anos ele próprio se tinha viciado na mãe e ela ocupara um espaço tão grande que pouco ou nenhum sobrara para quem mais quer que fosse.

Aquela conversa, no fim da tarde de sábado, no passeio à porta da sua loja de computadores, era bem a prova do acanhamento, do seu pouco à vontade com raparigas que a mãe, com subtileza e estratégia, sempre fora afastando da sua vida.

Agora, ali estava ele, pela primeira vez, eufórico, senhor do mundo, apaixonado. Uma sensação estranha de leveza, vontade de voar. Como era possível nunca ter sentido nada de parecido! O rosto dela, o mais belo do mundo, aquele olhar provocador e o sorriso terno e trocista toldavam-lhe o pensamento.

Já tarde, nessa noite, adormeceu cansado de tantas emoções mas foi um sono irrequieto, em vez de reparador cansou-o ainda mais. Acordou, aguardando ansioso que a luz da manhã entrasse no quarto e entretanto foi fazendo planos.

Levaria o seu fato azul, quase novo. Depois de estreado não mais o vestira. Também...não tinha vida social, de casa para o trabalho, dos clientes para a companhia da mãe. Poria aquela gravata encarnada, nota de cor no seu guarda-fato que o provocava sempre que o abria sem que ele tivesse coragem de a usar.

Reservado na maneira de ser, tímido até, era discreto na maneira de vestir mas a mãe caprichava em que ele andasse sempre apresentável, não fosse a vizinhança pensar mal dela.

Demorou-se na casa de banho. O que era rotina feita á pressa em todos os outros dias, naquela manhã passou a acto cerimonial e quando, finalmente, enfrentou o espelho para fazer o nó da gravata encarnada já passava das dez horas.

Procurou a sua melhor água-de-colónia, oferta da mãe pelo dia dos seus anos e que ainda permanecia na embalagem. Exagerou, teve consciência disso, mas naquele dia ele queria impressionar.

Saiu à porta da rua, estacou, olhou ao fundo onde estava o jardim que uma vez atravessado o levaria á marginal da mais linda linha de costa da Europa, seu orgulho, a linha do Estoril.

A manhã, de um Outubro já adiantado, estava enevoada e ele sentia-se estranho, eram momentos que ele vivia pela primeira vez, empolgantes, em que a alegria da novidade se misturava com o receio do desconhecido. Pela primeira vez estava a viver, a paixão acordara nele todos os bocadinhos do seu ser até aí entregues a si próprios como se esperassem aquele chamamento, aquele toque a reunir para dizerem presente.

Começou a andar, palmilhava o passeio mal sentindo o contacto com as pedras do chão ordenadas e já polidas de tanto calcorreadas.

Atravessou o jardim e a correr passou a marginal. Do outro lado a praia, o mar e aquelas areias que ele conhecia desde pequenino e onde sempre brincara. Nunca as tinha olhado como naquele momento. Esperava que elas fossem as testemunhas mudas do encontro mais importante da sua vida, na verdade, o único encontro.

Foi andando ao longo do murete que o separava da praia, ainda era cedo, o restaurante ficava mesmo na marginal, mais á frente. Sentou-se virado para o mar as pernas baloiçando sobre as areias.

Estendeu o olhar pela linha do horizonte mas nada via porque o oceano misturava-se com as nuvens que tendo descido sobre ele tardavam naquele dia em levantar-se.

Pensou na sua vida e percebeu que não mais iria ser a mesma a partir de agora. Aquele sentimento de paixão nunca vivido e que o dominava iria determinar o seu futuro, condicionar todas as suas decisões. Não sabia se seria para bem ou para mal mas não lhe podia fugir.

Escolheu uma mesa a um canto da sala virada para a entrada de modo a que pudesse vê-la quando chegasse. Apenas um casal de turistas escolhia na ementa o que iria comer, todas as mesas restantes estavam ainda desocupadas. Era cedo para um almoço de fim-de-semana mas as pessoas foram chegando e a sala compôs-se. Ele bebericava um Martini informando o empregado que aguardava a chegada de uma pessoa para fazer o pedido.

O tempo passava, não marcara hora porque lhe parecera não ser de boa educação, dissera-lhe apenas que esperaria por ela para almoçar. Afinal, não a conhecia mas sabia que as primeiras impressões podiam marcar o futuro da relação. Ela também falava pouco, preferia ouvi-lo a fazer as despesas da conversa mirando-o com os seus olhos escuros, algo enigmáticos a condizerem com o cabelo de azeviche.

A sala foi-se esvaziando e ele, assediado pelo empregado, pediu mais um Martini. Finalmente, levantou-se, pagou e saíu.

O ar do mar refrescou-lhe o rosto, o dia estava agora mais luminoso, as nuvens tinham-se levantado e ele começou a andar num passo de sonâmbulo. No limite do passeio, os carros na direcção de Lisboa, iam passando junto a ele.

Não conseguia alinhar nenhum pensamento, algo no seu cérebro se tinha desligado segregando uma dose de morfina para que ele não sofresse. Continuou a caminhar mas, de repente, parou abruptamente. Fixou a vista num automóvel do lado oposto da estrada, encostado ao passeio, com a luz dos piscas a trabalhar.

Estático, olhou atentamente. Ficou rígido, reconheceu a rapariga por quem estivera esperando para almoçar fumando despreocupadamente ao lado de outro homem.

Entrou na estrada, passo certo, a direito, o olhar fixo no automóvel. Uma travagem a fundo, um carro continuando a avançar, rodas imobilizadas, imparável no seu trajecto fatal. Um corpo projectado, o som surdo do estatelar no meio do asfalto. Mais travagens por todo o lado, confusão, carros parados, pessoas a correr e logo depois o barulho ainda distante da sirene do INEM.

A rapariga sai do automóvel, aproxima-se sem pressa, apreensiva. No chão, vê um jovem num impecável fato azul, gravata encarnada e um cheiro a morte envolta em perfume de água-de-colónia de boa qualidade.

Reconhece-o, deitado, corpo abandonado, está aquele que deveria ter sido o seu companheiro de almoço. Chegam as autoridades, mandam afastar, a médica debruça-se e aplica as técnicas de sobrevivência, demora um tempinho, parece uma eternidade, para tentar segurar uma vida. Descrente, manda recolher o corpo.

 A rapariga, que não se afastara muito, ainda julgou ouvir: “…está cadáver”.

A ambulância afasta-se rapidamente com o som estridente da sirene, a polícia intervêm, apita e gesticula para os carros circularem.

Na estrada da marginal, na linha de Lisboa-Estoril, o trânsito foi restabelecido… tudo regressou à normalidade.




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